Tardes descomplicadas eram aquelas em que se mascava Ping
Pong de hortelã e andava pelas calçadas de uma cidade do
interior, com çalças jeans estonadas, acreditando ser cocota.
Cocote em francês quer dizer galinha. Na
cidade onde eu nasci, garota popular, moderna.
Ser cocota e mascar chiclete ao mesmo tempo era
transgressor! Com a possibilidade de se tornar colecionador
apurado de figurinhas de bichos minotáuricos. Metade
uma coisa, metade outra. Jacacobra! Figurinha de jacaré com
cobra. Macachorro. Macaco com cachorro.
Quando as figurinhas se repetiam, trocavamos-nas – e, na
época, nem sabíamos que foram os soldados americanos que
trouxeram a goma de mascar para o Brasil durante a 2ª Guerra
Mundial.
De chiclete em chiclete, a Kibon lançou a marca Ping Pong em 1945 e manteve seu boom por muitas
décadas. A marca
Chiclets
provém de
"Chi-clé" chi significa boca e clé
significa movimento. Por sua vez, a palavra chiclete (a “correta” é goma de mascar)
provém da marca Chiclets pertencente a Adams
tanto quanto a Ping Pong.
No final, na boca, a goma de mascar é
sempre chiclete.
Mas há muito deixou-se de
mascar Ping Pong. Numa época em que se voga “pouca caloria”,
uma unidade desta goma, que não é só para criança, tem
19
calorias. Os chicletes sem açúcar prometem apenas seis
calorias por unidade.
Em minha adolescência, não existia o palavrão “caloria”.
Ninguém era obeso nem bulímico. Vivíamos desencanados. No
clube, depois da piscina, lanchinho, e depois do lanchinho,
sorvete e
ping-pong - nesse caso, refiro-me ao esporte
originário da Inglaterra - o nome onomatopéico provém
do som que a bolinha de celulóide fazia quando batia na
raquete oca de pele de carneiro, na metade do século XIX.
Aqui no Brasil e não na Inglaterra, com o cabelo ainda
cheirando a cloro, eu adorava jogar ping-pong (o nome
correto é tênis de mesa, os ingleses tentaram oficializar a
categoria como “ping-pong”, em 1921, mas a marca já estava
registrada, desde então a nomenclatura oficial do esporte é
“tênis de mesa”).
Nunca levei a sério o desporto. Muito menos competição.
Jogava mal, mas era pura diversão. E vim a descobrir, há
poucos meses, que, do outro lado do mundo, há acirradas
competições intercolegiais de ping-pong – afinal, em 1988, tornou-se esporte olímpico,
com destaque para
Japão e China.
Quando criança, sabia que para chegar à China bastava furar
o chão e ir até o final, do outro lado da “terra” e, ao
Japão, bastava pegar o metrô e descer na Liberdade, bairro
japonês de São Paulo.
Não sabia nada sobre campeonatos de ping-pong e sim de
basquete. Sou do mesmo lugar que é o Hélio Rubens, excelente
jogador de basquete, hoje treinador conhecido. Há quase 30
anos, ele era o
herói que projetaria nossa pequena cidade para o mundo.
Causava-nos grande frisson assistir com a família aos
campeonatos de basquete no ginásio do Poli Esportivo.
Campeonato significa pressão. Pressão dos técnicos e da
torcida na equipe e/ou jogadores. Uma verdadeira cocote
minute – como os franceses chamam a panela de pressão.
Anônimos viram famosos. Famosos ficam poderosos. Amigos, se
em times adversários, tornam-se inimigos e, na maioria das
vezes, o espírito esportivo, como diria minha avó, “vai pras cucuias”.
E é nesse impasse que ficarão os personagens Peco e Smile,
ao terem de se enfrentar nas disputas de finais de um
campeonato de tênis de mesa em Ping Pong -
filme que me revelou um Japão humano, não só de ideogramas
incompreensíveis e estatísticas de jovens suicidas.
Produzido em 2002, o filme esteve em cartaz no
Brasil, passagem relâmpago, entre junho e julho de 2006, na
Mostra Japão Pop que aconteceu no Centro Cultural
Banco do Brasil, em São Paulo e Brasília, com curadoria de
Rodrigo Sommer e Adriano Vanucci.
Ping Pong
é baseado no mangá homônimo muito popular no Japão criado em
1996 e distribuído em cinco volumes
pelo
mangaká Taiyou Matsumoto, que é fã de quadrinistas de HQ
como
Moebius e Enki Bilal.
Matsumoto entregou o projeto nas mãos de Fumihiro Masuri (Sori), que havia sido supervisor de efeitos
especiais de Titanic, filme de James Cameron.
Sori assinou a direção - mais que acertada! Trabalhou
exaustivamente na pós-produção para conseguiu o resultado
final: grafismos audaciosos, partidas bombásticas com cortes surreais e emocionantes.
Fiel ao mangá de origem - até os atores são
muito parecidos aos personagens no papel - honrou o universo
do criador e foi além da qualidade técnica.
Conseguiu imergir no drama de cada um dos personagens, mesmo
quando coadjuvantes. Captou a apreensão dos jogadores no momento
anterior às partidas. Mostrou com delicadeza o conflito
existencial de seus protagonistas.
Afinal
quem são exatamente os protagonistas? Eles mascam chiclete ou jogam tênis de mesa?
Os dois. E até mais! Quando querem se drogar vão até as
últimas conseqüências, se entopem de
refrigerante e esvaziam inúmeros saquinhos de petiscos.
Mas o mote não é esse. Ping Pong
é um filme que fala
sobre a amizade. A amizade entre dois amigos de infância e
de raquete, das vezes em que um se resguarda à sombra, deixando
de lado o ego e a vaidade, para
que o outro se revele.
Peco é
o melhor amigo
de Smile, desde
a tenra infância. Peko-peko em
japonês quer dizer faminto. Peco é “fominha” por bola, quer
vencer todas, afinal ele pode voar. Smile em
inglês é sorriso - difícil lembrar a última vez que
sorriu. Para Smile, o tênis de mesa não é tudo na vida, ele
encara o esporte de maneira anárquica, jogar bem não
significa ser classificado, competir ou ganhar. Ele joga
para passar o tempo e
refletir do que as pessoas são feitas.
Existe uma cena no filme que deixa claro a
personalidade de cada um de seus protagonistas, e a delícia
das diferenças:
CENA
Vagão de metrô-Interna-Dia
O vagão está em movimento. Peco coloca o fone de
ouvido.
Peco
(sacode a cabeça ao ritmo da música que ouve): Bong!!
Smile, a lado de Peco, olha pela janela.
Peco (sacode a cabeça ao ritmo da música que ouve): Pong!!!
(longa pausa) Bong!!
Smile: (para Peco) Completa o refrão... “in the USA”.
Nesse momento, o público percebe que a música a qual
Peco ouve - e canta apenas uma palavra (Bong ou Pong) - é a
letra da música do Bruce Springsteen “BORN in the USA”.
Peco
personifica a emoção, o impulso. Não se importa em não saber
a letra, ele sai cantando como a entende. Ao
contrário de Smile que personifica a razão, a reflexão. Para ele é importante entender e saber a letra
para cantar.
Os atores Arata (Smile) e Yôsuke Kubozuka (Peco) são
dotados de grande carisma. Impossível não se encantar por
eles. Arata é charmoso e não tão jovem quanto o personagem
que encarna em Ping Pong - na época, tinha
aproximadamente 28 anos - em seu currículo, mais de oito
filmes. O polêmico Kubozuka é intenso e explosivo tanto no
filme como na vida real. Atuou em tantos ou mais filmes que
o parceiro e em várias séries de TV no Japão.
Existe
um momento no filme em que um personagem secundário vive
o grande dilema "jogar ou não jogar" e entra em
pânico minutos antes da partida, tem a certeza de
que vai perder para o tal China (um grande jogador) - os chineses têm tantos ou
mais títulos e fama no ping-pong que os japoneses - os pais
estimulam o jovem: "Filho! Nem todo alemão bebe
cerveja, nem todo negro sabe sambar..."
A cena arranca risos da platéia.
O jovem ao ouvir aquilo, pára e refelete. E não importa se, no
final, o tal China ganhe de lavada. E o jovem acabe aos
berros e aos prantos. Ou vice-versa. A vida é cheia de erros
e acertos, ganhos e perdas. Um mais um pode não ser igual a
dois, dependendo de quem paga ou de quem recebe.
Jogar para se divertir. Jogar para ganhar.
Jogar apenas para
passar o tempo e refletir. Jogar e perder. Ping pang qiu
em chinês. Takkya em japonês. Tak-ku em
coreano. Os nomes, as línguas, culturas, mesmo distintos, têm algo em comum:
significados e significâncias.
Ping Pong é sem dúvida uma fábula humanista, uma comédia
esportiva, com espírito esportivo, aonde seus protagonistas
vão até as últimas conseqüências, ou inconseqüências, essenciais à adolescência, para não perder a amizade, para
ganhar a competição, mascando chiclete ou não.
Assistir a esse
filme
nos remete à sensação gostosa de uma época em que mascávamos
chiclete, andando pelas calçadas, acreditando ser dono da
verdade e, mal sabíamos que, no quarteirão seguinte,
poderíamos ser desmascarados por nossas próprias figurinhas
minotáuricas.
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*O filme Ping Pong não
foi lançado no Brasil, ele se encontra à venda na internet,
em sites como a
Amazon |