Numa determinada fase da minha vida,
todos os fatos ocorridos - acúmulo de confusões e desavenças -
pareciam-me completamente carmáticos. Eu estava bastante retraída
e exigente na postura esperada dos relacionamentos em geral. Principalmente
dos homens como parceiros. Sempre estava sozinha e adorava estar.
Era minha natureza. Liberdade “privada” não me agradava. Gostava
de estar nas ruas e ver o que acontecia com as nossas crianças,
com os nossos andarilhos, estar com os amigos... Enfim, também
tomar um trago. Às vezes sentia fortemente a necessidade de conquista,
de testar minha capacidade. Satisfação de ego. Em tais momentos
esse espírito adentrava-me sem freio. Cantava todos os meus amigos.
Nunca estava sã e sim tomada por um impulso alcoólico. E recebia
“nãos” como retorno das minhas cantadas. Ainda bem que tinha ótimos
amigos que entendiam as fases pelas quais eu passava, percebendo
que minha intenção, geralmente, era outra da qual demonstrava.
Afinal “amigo não se come,
degusta”.
Depois deste tipo de experiência, comecei olhar pessoas que não
tivessem o menor vínculo comigo, freqüentando os lugares mais
estranhos da cidade - sítios suspeitos- onde, mulheres não
eram as mais desejadas, mas eu adorava lugares assim.
E foi naquela noite, ainda me lembro...Uma noite de verão!
Eu estava num bar, com duas amigas, tomando um drinque, quando
de repente vi um garoto:
Confusão.
Olhos claros,
azuis, corpo pequeno e cabelo comprido.
Tons, cores, confusão. O olhar-olho daquele garoto.
Esclarecimento.
Um olhar-mar que não mostrava destino nem a vergonha borbulhante
de suas ondas: a transparência - Abstração-me! - de verde a azul.
E eu pensando que fossem dois olhos, um par de pote de mel.
Escorreguei.
Meus Deus! Estava me afundando e não conseguia sair, debatia meus
cílios, eram meus braços que se pestanejavam tentando sair dali,
pois aquele olhar... Era tão bom... Que eu iria com os afogados
de Iemanjá! Morte doce e lenta. Eu, afogada, no leito de espumas
leitosas, de ondas já quebradas pelo vento, mornadas do sol. Olhos
verdes ou azuis de olhar mel. Iemanjá, sua alma, já tinha
me levado com ela e para àquele de olhos de mar, corpo pequeno,
cabelo comprido.
Pesadelo.
Já o amava.
Vida.
Realidade. Ele me olhava, eu o olhava. Os olhares aos poucos ficavam
recíprocos.
Eu o olhava introvertidamente,
não assumindo totalmente a sedução. Ele olhava fazendo um gênero
de desinteressado. Passamos horas nos olhando, como se fôssemos
autênticos “voyeurs”. Nos olhos dele era claro enxergar
a intenção: “continue me olhando, eu gosto de ser observado, mas
saiba, baby, apenas te olho para satisfazer-me e saber que sou
notado... Pensa que sou misógino? Mas não é da sua conta.”. Em
meus olhos a intenção era outra:...“estou te olhando, continuo
te olhando e ficarei te olhando até eu me cansar.”.
Nesse meio tempo, - eu já tinha ido umas três vezes ao toalete
- chegou uma garota que mais parecia um chimpanzé travestido de
mulher que o tirou do meu foco. Filha de uma puta! Eu não queria
nada com o rapaz, mas me deixasse olhar um pouco mais. Queria
me divertir!
O chimpanzé -
já sentado ao seu lado, no mesmo galho - não parecia ser
sua fêmea, mas insistia em beijá-lo, e ele doava sua boca, como
quem doa órgãos, e sem movimentos musculares.
Pensei: “Xiiiii...
balde de água fria na minha investida”.
Comecei a ficar
alcoolizada e descarada. Ainda fazia o quatro.
Resolvi
escrever-lhe um bilhete com meu nome e telefone. Minhas amigas
arquitetaram um plano para que eu superasse minha frustração:
Na hora em que fôssemos embora, uma delas esbarraria no garoto
e eu, logo em seguida, colocaria o bilhete no bolso de mão da
jaqueta jeans que ele usava. No meio do tumulto do esbarrão -
deduzimos que o chimpanzé-fêmeo não notaria o papel sendo colocado
- e logo atrás de mim viria minha outra amiga...
Tomei mais dois
chopes e nada me incentivava a executar o plano. Continuávamos
a nos olhar, mesmo com a macaca ao seu lado, quando de repente
surgiu-me uma idéia, junto com uma terceira amiga, que acabava
de chegar. Cumprimentei-a e em seguida relatei o fato que ali
se passava. Fiz-lhe uma proposta onde, ela seria mensageira do
meu bilhete. Não pensou duas vezes e topou... Mas perdeu o momento
que o garoto estava sozinho.
O bilhete não foi entregue.
Queria
beber mais. Minha grana tinha acabado. Minhas amigas acharam-me
suficientemente alcoolizada e não pagariam mais nenhum chope pra
mim. Fiquei irada, queria beber mais. A situação estava difícil.
Juntei moedas. O valor total pagava meio chope. Fui ao caixa e
pedi a bebida. Não sei se por piedade ou porque a garota do caixa
já me conhecia, deu-me meio chope a mais, sem cobrar! Que incrível!
Tinha um chope inteiro em minha mão direita. Cheguei à mesa e
imediatamente fui reprovada por minhas amigas. Ignorei-as. Foi
então que elas decidiram ir embora. Eu não queria ir, pois, sentia
que alguma coisa aconteceria! As duas se levantaram e foram em
direção à saída. É claro, eu não faria nada. Apenas levantei-me
e as acompanhei. Cabisbaixa, passei pelo garoto, e o encarei a
fundo. Ele não se importou com a macaca do seu lado e também me
encarou. Nos despedimos como nos cumprimentamos e como nos conhecemos:
“via olhar”.
Cheguei em casa
e quase tentei suicídio com a televisão. Adormeci antes do ato.
II
Dormi seis horas. Acordei de ressaca. Tomei café da manhã e fui
para o trabalho. Durante o dia inteiro passaram flashes na minha
cabeça referente à noite anterior:
— “Veep, você não é
de nada, não assume seus desejos, enruste e não os realiza...”
Minha consciência gritou o dia inteiro frases desse tipo na minha
cabeça. Lembrei-me da face do rapaz: ele era super aguado - de
água doce. Eca! - bonitinho até, tinha a altura que eu gostava...
Mas não exalava absolutamente nada. Fiquei feliz por não lhe ter
entregado o bilhete, não queria ver o rosto daquele rapaz nunca
mais, nem se ele dissesse que me amava!
III
Uma semana após o “incidente
do bilhete, combinei com as mesmas amigas que, ao sair do trabalho,
às 20h30, eu me encontraria com elas naquele mesmo bar, para tomar
aqueles mesmos chopes.
Minhas amigas
já estavam lá quando cheguei. Passamos a noite conversando, rindo
e nos distraindo com papos boçais. Mas eu não parava de pensar
no “garoto do bilhete não entregue”. Mesmo com o desprezo que
sentia por ele, mesmo assim, queria vê-lo. Esse era mais um dos
motivos pelo qual eu estava ali. Nada óbvio me levava a crer que
ele iria naquele bar, aquela noite, pois ali, eu freqüentava há
anos e nunca o tinha visto lá. Mas seu perfil coincidia com o
do bar e minha intuição - ou talvez minha vontade árdua - dizia
que ele estava próximo e que logo apareceria. Uma de minhas amigas
interrompeu meus pensamentos dizendo:
— Tenho uma notícia que vai te deixar muito feliz... Lembra o
cara que você flertou há uma semana, neste mesmo bar?
Respondi que
sim com a cabeça. Compenetrada no que ela diria, consenti que
continuasse.
— Pois é, ele acabou de chegar e está bem atrás de você. Troque
de lugar comigo!
O lugar que ela
repousava seu traseiro, no banco, ficava exatamente à frente de
onde o fulano estava. Eu sabia que estava meio “altinha” mas me
sentia bem fisicamente... Porém, quando recebi a notícia, o álcool
subiu todo para a cabeça. E a senti girar. A respiração travou,
deu vontade de fazer xixi e quase gritei pela minha mãe. Pedi
licença às minhas amigas e fui ao toalete. Fui. Usei o vaso sanitário,
molhei bastante meu pulso, fiz vinte respirações abdominais, dei
mais três pulinhos, para que o álcool descesse da cabeça. Voltei.
Sentei-me na mesma cadeira. No meu bolso havia três fichas
de chope, sai da mesa e fui buscar um. Quando cheguei no balcão,
alguém já estava lá e eu não percebera. Era o garoto - que até
aquele momento não sabia seu nome. Passei meu braço por cima de
seu ombro para alcançar o balcão. Com a ficha na mão, pedi um
chope. Ele já havia pedido o seu. Mas, antes de pedir a bebida
quase voltei correndo para minha mesa, ao tê-lo visto. Eu tremia
- sempre desconfiei que sofria de uma doença grave, da qual não
tinha conhecimento, para ficar de tal maneira.
Que situação
ridícula! ! Queria me aproximar do cara e quando eu lá estava...
Tremia... E o escambáu! Mas logo decidi brincar com minha insegurança.
Comecei olhá-lo de baixo para cima sem olhar em seus olhos - intimando-o
com malícia. Ele fez o mesmo, só que no perfil de meu corpo. Não
me olhou nos olhos também.
Pensei: “estamos na
mesma situação”.
Não iríamos conseguir.
De repente nossos olhares
se cruzaram.
Ambos ficaram tímidos.
Eu tomei a iniciativa.
Soltei as primeiras
palavras:
— Oi. (com ar
de malícia) Tudo bem? (como quem pergunta: lembra-se de mim?).
—Tudo bem - respondeu
à minha pergunta.
Logo em seguida,
pegou seu chope e seguiu rumo à sua mesa. Eu fiz o mesmo, só que
rumo à mesa onde minhas amigas estavam. Sentei-me.
Minhas amigas
acusavam-me de bunda mole, covarde, impotente e outras coisinhas
mais. Tive a certeza de que faltava proteína na minha bebida.
Contei-lhes o
que tinha acontecido há alguns segundos atrás - talvez levantasse
o meu ibope - e deixei claro que era tudo que eu podia fazer,
o máximo e o suficiente. Elas se calaram por alguns instantes,
mas quando perceberam que eu não iria fazer mais nada e que tinha
a consciência tranqüila, uma de minhas amigas encarou o garoto
com sedução. Senti-me insultada. Afinal, qual era da minha amiga?
Querer seduzir o indivíduo que eu flertava? Então, ela disse:
—
Se você não consegue tomar uma atitude... Eu tomo, benzinho. Comecei
a girar o pescoço a cento e oitenta graus. Estávamos bem próximos.
Nesse momento, notei que ele sentara num lugar mais confortável
para nos paquerarmos! Que lindo! Que lindo passarinho o escambáu!
Às vezes nossos
olhares se encontravam e outras não. A cada dois minutos nos olhávamos
e essa atitude começava a surgir acompanhada de sorrisinhos.
A distância de
um para o outro, era a de uma cabeça imaginária. Houve uma
oportunidade em que, quando o olhei, ele olhava fixo um ponto
qualquer do bar. Parecia uma pessoa séria. Tomei coragem e exclamei:
— Nossa! Que
cara séria!
Ele percebeu
que eu havia iniciado um papo. Mas não ouviu direito o que eu
falara. Pôrra!- pensei - terei que repetir a cantada. Repeti-a
em tom irônico e com outra entonação na voz. Já que a cantada
era tão ridícula, criatividade na repetição talvez ajudasse.
Então, ele respondeu:
— Preocupação.
— Nossa! Preocupação
com o quê?
— O que você
disse?
— Preocupação
com o quê?
— Não, antes
disso.
Repassei o texto que estava escrito na minha cabeça. Pensei: “que
saco! É a terceira vez que vou repetir”. Repeti monossilabicamente:
— Nossa! Que cara séria!!
Ele contestou:
— Não, ainda antes disso.
— Antes disso,
pra você, eu não disse nada.
— Acho que sim
— Eu tenho sempre
o texto decorado quando faço uma pergunta ou um comentário.
— Ah...o script...
— É. Exatamente!!
— Você escreve?
Olhei meio assustada
pra ele, ao ouvir a pergunta. Como ele sabia que eu escrevia?
Seria coincidência? Ou estava ironizando a situação? Ou será que
ele sabia do bilhete, com meu nome e telefone, que escrevi e não
consegui lhe entregar? Será que ele sabia do meu diário??
Pensei: “esse
cara é bem esperto, deve ser um grandessíssimo cínico. Ele deve
estar querendo insinuar que sei escrever (bilhetes), mas que não
sei entregar o material na mão do editor interessado”. Então era
um jogo aquela pergunta.
Depois de segundos
de reflexão, raciocínio e boca aberta, respondi à sua pergunta:
— Por que pergunta
se escrevo?
Ele fez um olhar
de mistério. Eu continuei:
— Como sabe que
escrevo?
— Você não acabou de dizer que nunca esquece o "script"?
Nossa!! Que alívio!! Então não era um jogo. Sorri aliviada, pois
não tinha nenhuma relação àquela pergunta com aquele bilhete ou
o com meu diário.
— Você é carioca?
Perguntou.
— Não. Por quê?
Respondi já sabendo a resposta que viria.
— Por causa do sotaque.
Sempre que eu
conversava com alguém pela primeira vez, surgia essa pergunta:
“você é carioca?”.
Meu sotaque mesclado vinha do ócio dos domingos de qualquer paulistano,
misturado com a gula do carioca em engolir e arrastar as palavras.
— Não, não sou
carioca. Meu sotaque é assim porque nasci no interior de São Paulo,
divisa com Minas... Morei também dois anos na Bahia.
Respondi, justificando- me.
— Ahh...
Respondeu-me
parecendo entender perfeitamente e completou:
— Eu tenho trinta
anos.
Ouvi aquilo sem
entender, eu nem sequer tinha perguntado sua idade. Dei-lhe um
retorno do seu comentário:
— É?
Fingindo ter
dúvidas, continuei:
— Eu lhe daria
trinta anos.
— Você não acredita?
— Sim, acredito.
Mas, na realidade, eu chutaria 24 anos - menti.
— Pois é, eu
menti, tenho 24 anos - disse.
Que beleza! Tínhamos
acabado de nos conhecer e já estávamos mentindo um para o outro!
— Pô, cara! 24
ou 30? - retruquei.
Ele não
respondeu e seu silêncio quase me deixou confusa.
— Não, não tenho
24 anos, tenho 30 - respondeu.
— Você acha que sou velho?
— 30 anos é uma
idade maravilhosa! - respondi cinicamente.
Notei que ele ficou sem jeito, pelo tom da minha voz. Senti-me
culpada e tentei corrigir a falsa delicadeza. Afinal, acabáramos
de nos conhecer. Tentei ser razoável:
— Tenho 19 anos
e aparento ter mais, já pensou quando eu estiver com 24? Aparentarei
quarenta e poucos anos.
Não agüentei,
tentei, mas exagerei. O que eu dissera a pouco não adiantara muito.
Ele fingiu acreditar em minha idade para ser simpático.
Mas, afinal,
que importância tinha? Estávamos nós, em processos burocráticos
ou fazendo ficha de emprego?
Estávamos apenas tentando nos conhecer.
— Quantos chopes
você tomou? - perguntou.
Pensei: “esse
cara é louco, suas perguntas são tão fora de hora e sem cabimento.
A pergunta veio por eu, talvez, estar parecendo embriagada?”
Seriam meus olhos
- que eram pequenos, esticados e caídos - ou minhas palavras que
já estavam tropeçando? Ou seria um problema seu com os seus “quantos”?
Defendi-me:
— Apenas bebi
12 chopes.
Ele fizera uma
expressão de quem confirmara sua tese, a de que eu estava bêbada.
Tentei deixá-lo na dúvida:
— Talvez...Seis,
cinco, quatro ou apenas um.
— Quantos?
— Não me lembro.
Conversamos durante algum tempo. Ele me contou que trabalhava
numa loja de móveis atuais. Detalhou como era lá, quantas horas
por dia trabalhava, reclamou da displicência de seu chefe. Conversamos
também sobre a dificuldade social trabalhística em empregar homens
com menos de um metro e sessenta de altura... Bom, eu mal falei
de mim. Minha atenção estava voltada àquele papo tão interessante
e àquela pessoa que parecia tão frágil.
Estava convencida
que tinha conseguido conhecer um rapaz que se chamava Alexandre
e sem perceber transtornara minha vida em uma semana.
É, seu nome era Alexandre.
E tinha uma história pra contar.
Estava satisfeita.
Já havia 20 minutos que conversávamos quando notei seu olhar desviar
com precisa atenção para uma direção específica. Olhei também.
Era uma garota
que se aproximava. Ele ficou sem graça com minha presença
a seu lado ou talvez sem graça com a presença da garota que se
aproximava. Ou talvez sem graça com sua vaga existência.
Ele a conhecia,
deu-me a impressão de que já a esperava. A garota sentou-se exatamente
no espaço que tínhamos entre nós, o de uma cabeça imaginária,
só que, a partir daquele momento, não era mais uma cabeça imaginária
e sim um melão com peruca de nylon. Voltei à minha posição inicial.
Tinha dúvidas em deixá-los conversando, só os dois, e/ou participar
da conversa. De qualquer forma, preferi deixar os dois a sós.
A partir daquele momento preferi esquecer que Alexandre tinha
nome.
Voltei a conversar com minhas amigas, tentando ser o mais natural
possível, fingindo não ter sido descartada, nem a possibilidade
de, por um garoto que se chamava Alexandre e que trabalhava numa
loja de móveis e que, naquele exato momento, estava muito entretido
com a conversa da garota.
Ela era quiromante e pegava suas mãos falando-lhe sobre o
futuro. Tentei ouvir disfarçadamente a conversa. Ouvi algo sobre
caminhão de lixo, que talvez ele fosse atropelado por um. Não.
Talvez, aciden...Acidentado! Por um carro de bombeiro! Sim, acho
que era isso! Não consegui ouvir o resto. Droga! Estava curiosa,
e essa perfuração no meu tímpano me atrapalhando!
Consegui entrar no meio da conversa dos dois.
Derrubei meu
copo de chope na roupa preta da garota. Caíram apenas gotas e
se o melão não fosse bom, estragaria.
Fingi nada ter acontecido. Minhas amigas acharam que fora proposital.
Mas, conscientemente, não tinha a mínima intenção... Talvez a
força do meu inconsciente impulsionara o copo ou talvez a peruca
de nylon mesmo. Alexandre olhou-me, achando engraçado a garota
estar parcialmente molhada.
Fiquei mais algum tempo no bar e naquela insuportável situação.
Decidimos ir
embora. Fiz questão de não acenar um “adeus” ao garoto com nome.
Fui pra casa
pensando: “não, Veep, não era esse rapaz que você pensava casar
e ter filhos”.
Decididamente, não era.
IV
Era final de ano. Estava trabalhando
muito. Datilografando quatro calhamaços de arquivo por hora. Passava
muitas noites sem conseguir dormir. Tentava esquecer: A S D F
G espaço dedão H J K L Ç, embaixo, Z XCVB espaço dedão N M VÍRGULA
PONTO... Não conseguia. Começava tudo de novo. Aos domingos, levava
material de trabalho pra casa. Houve um sábado que decidi, literalmente,
não sair à noite, poupando assim minha energia. Evitaria até telefonemas.
Era meia-noite. O telefone toca e eu atendo. Um amigo carioca
estava de passagem por São Paulo. Fazia um ano que eu não o via.
Ao conversar com ele, mudei de idéia:
— Claro! Vamos
sair e tomar alguma coisa e contar as novidades!! Estou com saudades.
Marquei de nos
encontrarmos no Guetalla, o bar que eu estava freqüentando.
Ao chegar atrasada,
entrei e não vi meu amigo. Fui ao toalete, voltei e fui em direção
ao balcão de fichas:
—
O de sempre - disse.
O rapaz do caixa
já sabia o que eu beberia
— Quantos?- perguntou.
—Três - respondi,
lembrando-me de alguém sem ter me esquecido o "quanto".
Tirei o dinheiro da bolsa para pagar a bebida, nesse movimento,
quem eu vejo e que também me vê? Exatamente! Alexandre! Que estava
sentado com alguns amigos. Peguei o chope. Fui até a porta do
bar para esperar meu amigo. Mas logo voltei. No caminho, para
sentar-me, passei ao lado de Alexandre que não tinha nada de grande.
Ignorei-o.
Fiquei na porta do bar, lá estava melhor, olhando os carros que
passacam - dei um gole - observava os letreiros do cinema, que
ficava à minha frente, do outro lado da avenida. Estava em cartaz
“Henrique V”; “9 1/2 Semanas de Amor”; “Ladrões de Sabonete”,
filme da mostra internacional daquele ano.
As pessoas por
mim passavam - mais um gole - e me encaravam. Em seus pensamentos,
deveriam perguntar:
“está afim de programa, garota?”
Esperei um pouco mais até que meu amigo chegasse. Finalmente,
ele chegou. Abracei-o, beijei-o. Conversamos um pouco, do lado
de fora do bar, e fomos até o terceiro e último chope. Decidimos
ir para outro bar, um bar mais clean. Passamos o resto
da noite, nos admirando, contando tudo que tinha acontecido em
um ano, que era o tempo que a gente não se via... Enfim, matamos
a saudade.
Fora uma noite muito agradável.
Cheguei as cinco
da manhã em casa. Minha intenção de descanso fracassara. Quatro
horas depois teria que me retirar da cama e, já tirando a coberta
dela, pensava sobre a atitude infantil de esnobar Alexandre.
Ridículo e imaturo o que eu tinha feito: “Veep, toma-lhe três
beliscões no dedinho do pé”. Doeu. “Merecido”.
Eu entendia o
impulso que me levara a agir daquela forma: meu estava orgulho
ferido e só ferira a mim mesma. Tentava tirar Alexandre da minha
cabeça e não conseguia...
Adormeci sem perceber
Considerando os agouros que eu tinha passado, o domingo fora bem
produtivo. Consegui datilografar um artigo de duzentas e vinte
páginas.
V
Quarta-feira. Combinei de ir ao show imperdível de Paco de Lucia
com duas amigas.
Eu o adorava.
Fomos.
Do começo
ao fim, o show fora fantástico. Mali, Mila e eu saímos extasiadas
do concerto para três violões, com Paco.
Bebemos um pouco
durante o show. A bebida naquela casa de espetáculos era bem cara.
A noite estava agradável, quente e fresca, só faltava umedecer
um pouquinho mais nossas gargantas. Decidimos
ir pro Guetalla.
Quando chegamos, notei uma cena que se repetia. O filme
voltara ao início da fita. Alexandre estava
no mesmo lugar, da última vez que o vira, quando encontrei meu
amigo carioca. Eu estava, na mesma posição, tirando fichas pro
chope. Só que dessa vez, nos cumprimentamos como duas pessoas
normais.
Após tê-lo saudado,
peguei a ficha da bebida e fui para uma mesa bem distante à dele.
Minhas amigas me estranharam, pois, sabiam que eu estava super
afim de vê-lo. Notando o espanto em suas faces, reagi:
— Hoje eu não
estou afim.
Sentamos as três
raparigas à mesa. Conversávamos sobre coisas agradáveis. Nossas
auras deveriam estar brilhando.
Alexandre e eu nos olhávamos, sorrindo um pro outro. Ele num canto
do bar e eu no outro. Ambos querendo se aproximar, pra falar...E
acontecia ali um festival de timidez...Ou cinismo... Talvez burrice.
Saí da mesa e
fui pegar um chope - era o quinto da noite - quando retornei,
havia um homem tentando puxar um lero furado com minhas amigas.
Parecia incomoda-las.
Sentei-me de tal forma à mesa que minhas costas, de frente
ao suposto inconveniente, o excluía da roda e atrapalhava sua
conversa... O que pensavam os homens, ao verem mulheres sozinhas
ou acompanhadas por amigas, pela noite? “Mulheres sozinhas! Procuram
alguma coisa. Um companheiro por uma noite. Talvez sexo, talvez
carinho. A gente finge que vai dar carinho e pega o sexo. Ou quem
sabe, procurem confusão”.
Circulou um ar
diferente em nossa mesa. Era o som que saia da boca do homem-incômodo
que, dez minutos atrás, perturbava minhas amigas. Resolvemos dar-lhe
atenção. Pensei: “afinal, somos todos carentes”.
Ele nos contou
que trabalhava numa firma de arquitetura, era alemão e morava
“em Brasil” há nove anos. Ele estava bastante embriagado. Quando
andava, suas pernas pareciam trancinhas de rosca caseira. Nos
divertimos com ele, que até já sabia que eu estava paquerando
Alexandre, e então me aconselhou:
— Beije o porta-guardanapo, ele vai morrrrer de ciúme.
Sempre que o estrangeiro saía da mesa, voltava com a mão cheia
de tulipas de chope. Numa de suas saídas, vi uma cena que acontecia
paralela à nossa mesa. O gringo, de repente, foi até dois caras,
apontou o dedo no nariz de um deles e falou algo que não ouvi.
Senti algo errado. Perguntei a Mila se ela tinha ouvido o que
o alemão tinha dito ao rapaz. Ela repetiu com as palavras dele:
— “Não fica me
olhando, pois não gosto que homens me olhem”.
Ao ouvir aquilo,
fiquei envergonhada. O idiota que falara aquilo estava em nossa
mesa. Peguei minha bolsa e propus que fôssemos embora. As
meninas pediram pra que eu me acalmasse.
Assim que o homem-incomodado
retornara à mesa, com cinco chopes na mão, achando que ali permaneceria,
conversando com as três, levantei-me da cadeira furiosa, encarando-o.
Eu tenho um pouco mais de um metro e cinqüenta, ele deveria ter
metro e noventa. Perguntei-lhe:
— O que você disse a um daqueles rapazes? - apontei o dedo na
direção deles.
— Para eles não
ficarem me olhando.
— Por quê?
— Porque não gosto que homens me comam com os olhos, isso me incomoda.
— E se a ceia fosse de outra forma? - subjetivei - porque ele
apenas passou o olhar por você, como passaria por qualquer outro
objeto, pessoa, inseto ou por uma de nós. O que te incomoda é
o fato dele saber que é gay e estar de bem com isso.
— Qual é que
é? Eu não gosto de homens.
— Você sabia
que aqui é um lugar público?
— Sei e daí?
— O cara que você ameaçou é nosso amigo, sabia disso? - disse
apontando-lhe o dedo no nariz.
Ele ficou meio sem jeito e não respondeu nada. Continuei:
— Somos freqüentadoras
assíduas desse bar e todos que aqui freqüentam são nossos amigos.
Compartilhamos a partida da noite e, sem perceber, dividimos nossas
tristezas, carências e a bebida juntos, mesmo sem saber nossos
nomes, profissão ou tragédia individual. Não sei porque se irritar
com...
Fui interrompida.
— Eu me irrito
mesmo e se eles continuarem me olhando vai ter briga. Não estou
nem aí. Não dei liberdade pra eles, entendeu?
— Então, quer
dizer que não se importa mesmo?
— É isso aí!
— Só que tem um porém, você está sentado com três garotas que
nunca procuraram confusão, portanto se estivesse sozinho e não
em nossa mesa, poderia ameaçar quem quiser, apesar d’eu achar
estupidamente ridícula sua atitude, o problema é exclusivamente
seu. Mas você está na nossa mesa e nós mal lhe conhecemos, e ainda
quer arranjar confusão?
O gringo foi
se encolhendo... Então me respondeu:
— Mas eu não
estou acostumado a ser paquerado por homens.
— Então eu lhe
darei uma dica: não freqüente este bar. Aqui os homens, a maioria,
são homossexuais. GAYS. A melhor coisa que você faz é procurar
outro bar para tomar sua bebida.
— Mas eu tenho
direito de ficar aqui, estou pagando o que consumo.
— Mas vai ser incomodado, pois o nada te incomoda!
Ele deu uma pausa reflexiva e respondeu:
— É, você pode ter razão. Nem estou sendo cavalheiro.Vocês sim
são garotas simpáticas... Mas é que eu não sou obrigado.
— Olha, você
está tentando me dizer que um daqueles rapazes invadiu sua privacidade,
certo?
— Certíssimo.
— E você odiou?
— Exatamente.
— Porque sua preferência sexual é mulher e não homem, certo?
— É, é isso aí.
— Então temos
algo em comum. Sou casada com duas mulheres: Mali e Mila que estão
à sua esquerda.
Ele arregalou
os olhos em direção às meninas, tendo dúvidas do que acabara de
ouvir.
Continuei:
— A relação
entre as três é extremamente delicada. Se uma relação a dois é
complicada, imagina a três? E ainda mais homossexual?! E não sei
lhe dizer quem é a mais ciumenta. AQUELE RAPAZ QUE EU DISSE ESTAR
PAQUERANDO, É MERO PRETEXTO. Os homens, normalmente, não nos atraem.
Eu continuava sem dar trégua:
— Quando perguntou se podia sentar-se à nossa mesa, as três fizeram
cara feia, mas você ignorou o fato. Nós educadamente demos-lhe
atenção.
O alemão se encolheu
de tal maneira que, naquele momento, estava quase do meu tamanho.
Eu, seriíssima, continuava:
— Não queremos você em nossa mesa. Sua energia machista nos irritou
ao extremo. Por favor, peço que se retire.
Assustado e pasmado, o alemão retirou-se com sua bebida completamente
atordoado. Acho que o convenci com meu irônico argumento.
Minhas amigas
não ouviram a conversa e não compreenderam o motivo pelo qual
o homem atordoado, cabisbaixo, se retirara da mesa. Perguntaram-me
o que acontecera. Contei-lhes toda a conversa. A expressão em
suas faces foi semelhante a do gringo. Acharam que eu tinha sido
radical, mas logo perceberam que o argumento tinha dado certo,
dando, elas, gargalhadas após o fato relatado.
Sinceramente
eu gostaria que o alemão pudesse compreender sua estupidez.
Desde onze anos
de idade, mais ou menos, eu fora descolada pra inventar estórias
absurdas e acreditava tanto nelas, era tão convicta do que criava
que as pessoas acreditavam tranqüilamente. Notavam-se incoerências,
mas eu me envolvia tanto que os ouvintes perdiam os parâmetros
do real e do imaginário.
Nossa mesa estava tranqüila. Lembrei-me, sem ter esquecido, que
Alexandre estava sentado à minha frente, em sua mesa. O vi levantar-se
e caminhar em direção ao Wirmo Carma (W.C.). Em sua trajetória,
havia uma cadeira com uma garota sentada. Quando Alexandre por
ela passou, a garota fez questão de virar o corpo inteiro para
vê-lo passar. Os olhares se cruzaram.
Esse olhar que se cruzou e esse corpo que se retorceu, eram meus.
Ele entrou no
banheiro.
Pensei: “na volta, ele passará por mim, aí então, eu o convidarei
para sentar-se ao meu lado. "Sim, Veep, você conseguirá”.
Minhas amigas queriam ir embora. Eu implorei para que elas
ficassem mais um pouco, pois eu tinha um motivo justo para permanecer
ali e elas sabiam qual era. Mila disse:
— Há três horas estamos aqui e nesse tempo toda você ficou estática.
Talvez precise de mais três horas pra agir e não estamos dispostas
a esperar cento e oitenta minutos. — Só mais quinze minutos...
—Nããooo!! - as
duas responderam.
— Então, cinco...
Alguém me interrompeu.
Ouvi uma voz de veludo acariciar meus tímpanos e a voz disse:
— Oi!
Era Alexandre
que voltara do Wirmo. Quando o foquei para ser recíproca com seu
"oi", ele disse:
— Um momento...-
e retirou-se.
Eu sabia que
ele voltaria.
As meninas me
deram um beijo de despedida desejando-me boa sorte, retiraram-se
e eu fiquei sozinha. Novamente, tremia.
Um vento passou pelas minhas costas.
— Demorei? - indagou
Alexandre, já sentado ao meu lado.
Antes que respondesse, ele prosseguiu:
— Fui despedir
dos meus amigos.
Eu estava tensa e ansiosa.
— Onde você mora?-
perguntei.
— Na Aclimação.
— Ótimo! Podemos voltar juntos, pois é caminho da minha casa.
Eu morava na Avenida Paulista e estávamos na Consolação com Paulista.
Ele, aparentando
gostar da idéia, concordou.
Não sabia, ao
certo, se eu estava com receio de ir sozinha pra casa - era tarde
e eu não tinha dinheiro pra pagar um táxi - ou se talvez fosse
o medo da hipótese de Alexandre ir embora, antes d’eu saciar minha
vontade.
Queria conhecê-lo
um pouco mais e estava disposta a ficar o tempo necessário.
Enquanto conversávamos, eu e Alexandre, percebi que as palavras
nada diziam. Notei também que, quando nossos corpos se aproximavam,
surgia uma energia tão louca, tão forte, a temperatura lembrava
algo materno, uterino. Eu sabia que ambos sentiam o mesmo, pois
nós juntos, gerávamos aquela atmosfera que não era intencional,
não tinha energia sexual, acontecia naturalmente, talvez se usada
com esse intuito, o da energia sexual, fosse "uau!",
mas naquele momento não nos interessava. Eu estava começando a
perceber sua insegurança, sua fragilidade e sua delicadeza. A
cada segundo que passava, eu me envolvia mais e mais, me atirando
num mar, com os olhos totalmente vendados.
Alexandre insistia
em brincar com sua idade. Só que dessa vez, dizia ter 16 anos.
Fez questão de mostrar sua carteira de identidade. Quando li,
o ano de nascimento era o de 1974 e estávamos em 1990. Então,
ele tinha dezesseis anos. Pasmada, acreditei. Olhava sua face,
procurando um adolescente e somente enxergava um rapaz com cara
e rugas de 30 anos que tinha lindos olhos azuis. Voltei a mim
e percebi que tinha visto a data demissão da carteira e não
a data de nascimento. Ele tinha 30 anos.
Não entendia
o motivo insistente em querer me confundir com sua idade, pois
para mim não era nenhum ponto de referência, não tinha valor algum,
diante do que eu sentia. Estava quase chegando a conclusão que
aquela forma de agir era algum trauma em sua vida. Confirmei minha
idade. Ele QUIS VER MINHA IDENTIDADE. Mostrei-lhe. Confirmara
meus 18 anos. Todavia eu era precoce. Senti-o se afastar momentaneamente,
talvez pensasse na impossibilidade de se arriscar com uma garota
da minha idade. Tentei aliviar-me, pensando que aquela pauta de
sempre - a da idade - fosse um pretexto para desenrolar outro
assunto e assim, quem sabe, falaríamos mais sobre nossas vidas,
trocaríamos figurinhas e segredos de um pro outro. Talvez o segredo
da vida de Alexandre estivesse em sua idade! É, talvez fosse isso
mesmo!!
Mudamos de assunto.
Alexandre contara-me
que trabalhava em São Paulo para sustentar a mãe doente, que morava
no interior. Tinha duas irmãs. Não se dava muito bem com a mais
velha, tinha problemas de incompatibilidade de gênio. Com a mais
nova, de 19 anos, tinha mais problemas ainda, por causa do excesso
de compatibilidade de gênio. Fora, ele, apaixonado por ela. Literalmente.
A paixão fora correspondida... E consumada!
Fingi não ter me chocado com ao ouvir aquilo e naturalmente perguntei-lhe
se era passado. Ele respondeu-me que sim, que já havia superado
essa paixão devastadora. Tranqüilizei-me. Ele deveria
ser mais normal atualmente.
Achei aquele
relato tão íntimo para ser dito a uma pessoa que ele conhecia
a tão pouco tempo. Seria uma forma de me chocar, contando-me a
amarga história? Amarga para mim, para ele o contrário. Mas, por
quê? Queria provar que era suficientemente problemático? Irreverente?
Moderno, talvez? Mas, por quê?
Não falo sobre a minha intimidade com qualquer pessoa e principalmente
se não a conheço. Normalmente é assim com qualquer pessoa que
não está disposta a pôr tudo a perder ou a se expor. Prefiro contar
como quebrei meus dentes da frente, numa brincadeira de infância
com minha prima, por exemplo. Conclui que, assim, poderia
ser com ele também. Mas não conseguia entender porque aquele assunto
e naquele momento.
Eu falava sobre
mim, quando, Alexandre interrompeu:
— Dê-me sua mão
esquerda.
— Pra quê?
— Posso olhá-la?
Antes de responder, pensei: “será que o que ele aprendeu com a
cabeça de melão com peruca de nylon, ele aplicará comigo? Justamente
comigo? Esse truque tem teias de aranha. Não, comigo não!!".
Relaxei o corpo e desmoronei minha mão sobre a dele. Seus olhos
pareciam penetrar nas minhas veias, como se pudessem enxergar
meus ossos e as articulações.
Um vento correra dentro de meu corpo. Começara pelos dedos da
minha mão esquerda, subindo pelo braço até o pescoço, no pescoço
esparramou-se pelo braço direito e o colo. Pelos seios. Estômago,
barriga, quadris, escorregou pelo meu ventre, passou por minhas
pernas até os pés. Minha respiração começou a ficar intensa.
Ele ficara olhando
minha mão durante cinco minutos, aproximadamente, devolvendo-a
depois em seu lugar. Eu me sentia descabelada, naquele lugar público.
Tentei disfarçar meu estado.
Perguntei:
— E aí? O que você viu?
— Muitas coisas.
Encarei-o, querendo
saber mais detalhes “muita coisa” era bastante vago. Entendendo
minha expressão de reticências, respondeu-me:
— São fatos para
serem observados e não comentados.
— Quer dizer
que eu não posso saber?
— Fazendo a leitura
da sua mão, pude lhe conhecer melhor.
Fiquei calada. Era óbvio entender o que ele queria dizer. Fôra
o truque da leitura em braile. Famoso golpe. Não me contentando,
reclamei:
— Eu lhe cedi
minha mão e você não vai me dizer nada? Diga pelo menos, alguma
coisa, senão vou cobrar os cinco minutos -brinquei- ou vou pensar
que é um embuste!
— Vi dois homens
em sua vida -disse misterioso- e um amor forte que se foi. Esses
dois homens que me refiro, estão atualmente em sua vida e/ou estão
por vir. Um vai ser insignificante, mas lhe trará prazer. O outro
vai fazer você sofrer, mas lhe ajudará no amadurecimento emocional.
Sua seriedade
era tão grande que ele parecia um perfeito quiromante.
Respeitei-o,
ficando calada alguns segundos, então, perguntou-me:
— Qual a parte da palma da minha mão que você mais gosta?
Olhei para sua
mão e apontei a “anticoxa” do dedão.
— O que você
faria com ela? — perguntou-me.
Pensei.
Ele pediu para
que eu mostrasse.
A minha mão.
Então, apalpei
a parte da sua, a que eu mais gostara, oscilando do toque sutil
para o selvagem. Detive-me por alguns instantes e perguntei:
— O que isso
significa?
— A parte da
minha mão que você escolheu representa Vênus, que, por sua vez,
representa a sensualidade. O que você fez, foi mostrar exatamente
o que mais gosta em mim e o que faria com isso, ou seja, você
gosta da minha sensualidade e tem intenções com ela.
Percebi o que
tinha feito. Estava totalmente exposta naquele momento. Docemente,
ele sorriu, percebendo o quão sem jeito eu estava.
Saímos do Guetalla
e fomos caminhando pela Avenida Paulista, esperando um táxi passar.
Já estávamos abraçados.
— Tenho que acordar
às dez horas —falou.
— Quer que eu
lhe acorde às dez?
— Você
dorme em casa? — perguntou.
— Você tem telefone?
Eu poderia lhe telefonar.
— Não. Não tenho telefone
— bocejou graciosamente.
— Tudo bem, então, eu durmo
em sua casa.
Ele sorriu. Continuamos
calados até passar um táxi.
VI
Aclimação. Eu já havia
morado naquele bairro durante três anos... Simpatizava com ele.
O carro parara, Alexandre pagara a corrida do táxi. Fizemos o
trajeto calados. Descemos do carro.
O prédio em que morava era bem antigo. Subimos até o quinto
andar, pelas escadas, o elevador estava em manutenção. Entramos
em seu apartamento.
Havia uma sala
com alguns móveis: uma mesa acompanhada de duas cadeiras. Almofadas
esparramadas pelo chão. Os quadros faziam parte de uma sala
de estar para formigas e baratas, pois ficavam três dedos acima
do rodapé. Excêntrico. Estantes muito pequenas pareciam que tinham
sido projetadas para um anão, como muitas outras coisas pela casa.
Plantas faziam jogos de cores com os móveis e detalhes daquela
simpática sala.
Tentava relaxar
com minúcias, mas estava muito tensa e retraída. Concluí: “Veep,
você não está preparada para isto”.
"Isto o
quê?”.
Alexandre serviu-me uma dose de vodka, pedindo licença para tomar
um banho. Fingindo bebê-la, consenti. Eu tinha repulsa a vodka.
Enquanto as águas do chuveiro deslizavam seu corpo, caminhei até
a cozinha, jogando a bebida no ralo da pia.
Voltei à sala.
Peguei uma revista de história em quadrinhos e comecei a lê-la.
Na realidade, meus olhos passavam pelos desenhos e balões. Meus
pensamentos vagavam. Pensava: “dormiremos juntos, na mesma cama
ou em quartos separados? Faremos sexo ou amor?”. Céus!! Não sabia
se eu tinha direito de sentir prazer! Não sabia porque estava
ali. Provavelmente, ele não pensasse em sexo...Talvez nem gostasse
de fazê-lo. Talvez quisesse apenas, dividir a cama com um calor
humano. Estava frio, notei que não havia aquecedor na casa dele.
Exato. O calor humano deveria lhe interessar. Por um momento me
senti vulgar. Nós criamos um clima que surgira com suas próprias
vontades. Fechei a revista de história em quadrinhos.
Caminhei até
a janela e fiquei olhando à vista.
Era chata.
Existiam alguns
prédios ao redor: feios e baixos.
Áreas abandonadas,
aterros.
Não havia movimento
na rua naquela madrugada de sábado.
Entediante.
Tentava, novamente,
me acalmar, pensando em coisas fúteis. Nada adiantava. Pensava
no que aconteceria quando Alexandre saísse do banho e como eu
iria "proceder o caso".
Aparentemente, eu era a pessoa mais calma de São Paulo. Saí da
janela.
Acomodei-me em
algumas almofadas. Tirei uma lixa de unha da bolsa. Ridículo lixar
as unhas naquele momento! Guardei-a de volta na bolsa.
Alexandre ressurgiu
com uma toalha enrolada em seu corpo. Seu tórax estava exposto.
Sua pele era demasiada branca. Fiquei encantada. Voltei à infância,
lembrando-me de contos infantis, como o da Branca de Neve.
Então, perguntou-me:
— Quer tomar um banho?
— Não.
— Quer mais vodka?
— Não. Obrigada.
— Quer acompanhar-me
até o quarto?
— Não.
— Afinal, quer alguma coisa?
— Tem baralho? Podemos jogar
uma partida de Buraco!
— Não, não tenho baralho e não gosto de jogar cartas.
— O que
você quer fazer?
— Deitar-me na
cama e dormir
— Ótimo! Pode ser. Estou com fome.
— Quer comer
algo?
— Não... O que
eu queria dizer é que também estou com sono e não com fome.
— Ah é?
— Acho que excedi na quantidade de chope. Meu corpo está mole.
Repousar é uma boa idéia - finalizei.
Houve silêncio
por alguns minutos.
— Acompanhe-me
-falou.
Levantei-me das
almofadas e o acompanhei. Ele mostrara-me o resto do apartamento.
Alexandre dividia o apartamento com uma atriz de teatro infantil
e com uma estudante de História. Nenhuma das duas estavam.
Havia três quartos: o primeiro, com uma cama de casal e uma penteadeira
repleta de perfumes franceses e talcos; o segundo, a porta estava
fechada, como se nada existisse dentro. Chegamos ao terceiro
quarto: estreito, possuía um colchão de dois centímetros de espessura
—seu forro estava bastante rasgado; vários livros dependurados
numa estante, livros de misoginia, antropofagia e alguns de mitologia
grega, como, “Alexandre, O Grande”, algumas roupas estavam dispostas
em araras. Alexandre arrumara o colchão, forrando-o com um lençol
lilás, colocara algumas almofadas ao lado do leito, para não ter
perigo de “cairmos da cama”.
— Você prefere
lençol ou cobertor para se cobrir?
— Lençol —respondi.
Tirou a toalha
do seu corpo.
Deitou-se no colchão.
Cobriu-se com o lençol.
Eu continuara
em pé vestida.
— Você está bem?
— Sim, claro!—respondi.
Se alguém lesse meus pensamentos naquele momento, teria a certeza
de que eu, nunca tinha transado, feito amor ou sexo. Mas eu sabia
que nunca desejara alguém como o desejava, naquele estreito quarto.
Algo além do seu sexo me interessava.
Sentei-me no
colchão —ele me observava— tirei meus sapatos e os ajeitei num
canto do quarto. Tentei tirar o cinto e não consegui. Eu estava
de costas e Alexandre flagrando o quão tímida estava, perguntou:
— Quer que eu apague a luz?
— Não. Não é
preciso. Não gosto de escuridão.
Ele ainda me
observava, com seu corpo deitado. Sua cabeça apoiada na mão, sua
mão apoiada no cotovelo, seu cotovelo apoiado no colchão e o colchão
apoiado no chão.
Cadência.
Continuava com
dificuldades para tirar o cinto, quando senti minha cintura ser
abraçada. O garoto, que agora eu sabia o nome dele, tentava me
ajudar. Sua respiração passara por meu pescoço —estremeci em mim—
mas ele, logo voltara ao lugar de antes.
Tentava tirar a calça —ajustada ao corpo— para facilitar, sentei-me
no colchão. Não adiantando, levantei-me novamente, ficando de
bunda ao moço. Desci com sutileza a calça, colocando-a em cima
de uma cadeira. Ainda de pé, tirei os brincos, o colar. Tentava
não deixar transparecer meu exacerbado nervosismo. Sentei-me no
colchão.
Ainda restavam
no corpo uma blusa lilás e uma calcinha rosa. O par de meias verde
continuava em meus pés. Tirei-as. Novamente, Alexandre viera por
trás de mim e encostara seus lábios em minha nuca, meu pescoço.
Virei-me e toquei seus lábios, esse encontro gerara o beijo mais
indecifrável que eu já sentira, até então, na minha vida. Não
vi o início e parecia não ter fim.
Deitei-me sobre
Alexandre, agarrando sua pele com intenção de jamais abandoná-la.
Apertava-o contra mim. Beijava seu rosto, olhos, pescoço. Minhas
mãos deslizavam em seus ombros, sua cintura. Tocava suas omoplatas
que me pertenciam e o seu pênis também era meu, estava em minhas
mãos, já possuía a alma de Alexandre completamente.
Alexandre, com
os dedos, tocava meu colo sem pressa de chegar, tocava nos meus
seios, no meu ventre. Seu corpo estava sobre o meu. Enquanto ele
me beijava a boca, seu longo cabelo se arrastava pela minha face.
Era sensual, semelhante ao movimento dos cílios, ao piscar dos
olhos que desliza no ar.
Havia uma imagem carnal em minha frente, de pele branca e olhos
de um azul profundo, a atmosfera tornava-se cada vez mais mágica.
Ele beijava meus seios, acariciando meu cabelo, enquanto o seu,
não tinha direção pra ir ou voltar. Eu o comprimia, mais e mais,
ao meu corpo. A timidez e a tensão —que, antes, eram máscaras
do meu desejo — dissolveram-se.
Eu estava
nua, completamente nua. Minha pele descolada da carne.
Apenas um desejo incontrolável.
Transamos
durante toda a madrugada, O sol nasceu. Nós dois éramos, então,
uma só pessoa.
O olhar-mar estava morto.
Eu estava viva.
Desafogada
Adormecemos.
VII
Naquela noite de inverno —eu
estava num bar com alguns amigos, bebendo um Jack Daniel's
— algumas estações tinham se passado desde o meu primeiro e único
encontro com Alexandre. Obtive informações de que ele era misógino.
Ninguém jamais entendera o motivo pelo qual ele teria ficado comigo.
Nunca mais o vi, desde a noite que toquei sua alma. Pensava nele
quando de repente percebo um moço muito bonito me olhando. O rapaz
tinha corpo forte, sua pele era clara e o cabelo era tão escuro
quanto curto...
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