BECO-EXT-DIA
Detalhe de
um muro branco recém-pintado. Som de garrafa de vidro rolando
no asfalto. Detalhe de um vidro de XAROPE BENTIL. Som de lata
de spray sendo chacoalhado. PLÍNIO, garoto branco, 16 anos,
estilo skatista vagabundo, veste uma camiseta com os dizeres
Quem sou?, nas costas. Plínio tenta se equilibrar,
tombando o corpo para a direita e para a esquerda e pára de
chacoalhar o spray. Ele pára e observa o muro branco. FUSÃO
PARA:
ANIMAÇÃO/ALUCINAÇÃO
DE PLÍNIO
O
muro branco, desfocado, aos poucos, atinge a textura de TINTA,
de CORES CÍTRICAS, num movimento, em 3D, circular e escaldante,
e volta ao normal. Em BG, BUZINAS e CARROS em movimento.
FUSÃO PARA:
VOLTAMOS AO BECO
Plínio
cambaleia, tenta se firmar ao chão. Num movimento amplo com
o braço, picha um pequeno PONTO PRETO no muro.
CALÇADÃO/ZONA SUL-EXT-DIA
Uma
ADOLESCENTE branca, bem vestida, sentada num banco, fuma um
baseado. Laranjinha e Acerola passam por ela, e atravessam a
avenida onde circulam carros de luxo.
LARANJINHA (preocupado,
para Acerola)
Se a gente tá indo comprar bagulho
pro chefe da bocada, a gente tá ajudando o tráfico?
ACEROLA
Se liga! O que nós vai comprar
não é pro tráfico, é pro traficante!
ACEROLA (olhando
para o beco)
...Rapá, o cara é doidão!
Acerola
entra sorrateiro no beco, vê logo na entrada uma LATA DE TINTA
BRANCA VAZIA e um ROLO DE TINTA USADO. Laranjinha o segue. Plínio,
de costas, está a pichar. Acerola cutuca Laranjinha e aponta
para o pichado: uma ESPIRAL tosca com um ponto no meio. Acerola
ri baixinho. Plínio chacoalha a lata de spray. A lata voa para
trás e cai no chão, aos pés de Laranjinha. Plínio nem percebe
que a lata lhe escapou, e “picha” o muro.
LARANJINHA
(baixinho, olhando para a lata de spray)
Devolve pro cara?
ACEROLA
É melhor nem tocar nisso, nego
sempre se fode!
Laranjinha
agacha e pega a lata de spray. LUZES LARANJAS e oscilantes invadem
o beco, e chamam a atenção de Plínio que se vira. Na frente
de sua camiseta o silk screen: Eu
sou, mas quem não é? Surpreso, Plínio vê Laranjinha, agachado,
imóvel, e Acerola, tenso, ao ver a VIATURA POLICIAL que pára
na entrada do beco.
Dois policiais,
brancos, 32/33 anos, saem da viatura, na maior pressão, calças
bem justas, ajeitando o revólver na cintura: Um deles é PA,
bem alto, sua voz é fina e caricata; o outro é PB, bem baixo,
sua voz é grossa e caricata. Uma MÚSICA INCIDENTAL, no estilo
das dos seriados policias DOS ANOS 70, toca. PA e PB adentram
o beco.
PB
Paradinho todo mundo aí, mora!
PA tropeça
na lata de tinta. Ouve-se a agulha riscar o disco e a música
sumir. PB ajuda PA a levantar. Eles seguem.
PB
Você aí!
Acerola está
duro, imóvel.
ACEROLA
(nervoso)
Eu?
PA e PB se
aproximam de Acerola, mas olham para Plínio.
PA (para
Acerola)
Não, seu irmão de cor.
Plínio mexe
nas orelhas, como se tentasse desentupi-la.
PLÍNIO
Eu?
PA
Você lá é negro?
PA e PB passam
por Plínio, mas têm os olhos fixos no muro, e param diante dele.
Pernas abertas, mãos na cintura, eles observam o pichado. ½
pausa.
PB (para PA)
Mas que diabos é isso?
PA se aproxima,
se afasta do muro e coça a cabeça, tenta entender o pichado. PB
faz o mesmo só que, enquanto PA vai para frente, PB vai para
trás. As testas franzidas de PA e PB mostram que não entenderam
o desenho pichado. Eles se olham.
PB
Vamos perguntar pro artista...
PA
...que está com o objeto do crime
na mão!
Vemos Laranjinha,
lata de spray na mão, de cócoras, tentando não perder o equilíbrio.
PB com o DEDO INDICADOR "pede" que Laranjinha se aproxime.
Laranjinha se levanta e vai até PA e PB, Acerola o segue. Em
fila indiana, Acerola, PA, Laranjinha e PB, observam o pichado.
Plínio se aproxima deles, viajandão, parece dormir de olhos
abertos.
PA (para Laranjinha)
Pra que se arriscar com uma merda
destas?
Laranjinha
abaixa a cabeça.
PB
Se a sua vida não faz sentido...
PA
...a gente não é obrigado!
Laranjinha
curva o pescoço.
PB
Tenho dó da tinta que saiu da
lata pra nada!
Laranjinha
abaixa os ombros
PA
Fico zonzo só de olhar!
Laranjinha
deixa cair a lata de spray no chão. O som desperta Plínio.
PLÍNIO (para PA e PB)
Espera aí!
PA olhar
para as mãos de Plínio. DETALHE das mãos de Plínio com machas
de tinta.
PA (cutuca PB, enojado)
Que nojo! Quanto tempo o garoto...
PB
...não toma banho?!
PLÍNIO (aponta Laranjinha)
...O que este garoto negro, pobre
e fodido fez...
ACEROLA (p. da vida)
Qualé, seu maluco?
PLÍNIO
...Foi expressar o que está em
seu inconsciente!
PA (irônico)
Ar...
PB (irônico)
...ran. (MT) E daí?
PLÍNIO
Esse grafite...
Laranjinha
ergue a cabeça, ouve Plínio com atenção.
PB
...Cidadão! Isso está longe de
ser um GRAFITE!(MT, para PA) Já está quase na hora do
nosso almoço.
PA
Eu também estou com fome.
PLÍNIO (enfático)
...Esse
artista deveria estar ganhando muita grana, com sua arte, com
seu talento...
Laranjinha
estufa o peito, envaidecido.
PLÍNIO (filosófico, apontando
o pichado)
...Aqui está a opressão, uma ida
sem volta...
ACEROLA (ri, baixinho,
cutuca Laranjinha)
O cara é doidão mesmo!
LARANJINHA
Por quê? (baixinho, bravo)
Você acha que eu não tenho talento?
ACEROLA
Você pirou? Nem foi você que pichou
essa porra?!
Ouve-se uma
VOZ FEMININA que vem do radio escuta policial. PA e PB olham
para a viatura.
VOZ FEMININA
“Viatura 127! Respondam! Emergência!”
A música
incidental, de seriado policial dos anos 70, volta a tocar.
PA e PB arrumam seus distintivos, ajeitam os zíperes de suas
calças, e correm em direção à viatura. PA, atrás de PB, escorrega
no rolo de tinta. A música se distorce, e some. PB entra na
viatura, fala na escuta, e sai, cantando pneu. PA se levanta,
bate a mão na calça, limpando-a. A viatura volta. PA entra no
carro e fecha a porta. A viatura sai.
Acerola,
Plínio, e Laranjinha estão parados, boquiabertos, a olhar para
a entrada do beco. Ouve-se o pneu cantar, já um pouco distante.
Acerola reage.
ACEROLA (para Plínio)
Ô, filolsofo!
(bravo) Tu ia deixar meu amigo levar a SUA culpa?
LARANJINHA (cabisbaixo, para
si)
Já tava até acreditando...
PLÍNIO
Eu livrei a de vocês, e é assim
que me agradecem? (MT) De onde vocês são? (MT)
Pra onde vocês vão?
ACEROLA (cantado, irritado)
Nós somos da favela. Lá, já temos
bastante problema. Pra longe de tu é o lema!!
PLÍNIO
Não! Vocês têm a solução! (para
si) Drugs!
ÔNIBUS-INT-DIA
Acerola,
Laranjinha estão na parte da frente do ônibus, parcialmente
lotado. Plínio está na catraca.
LARANJINHA (bravo)
Como é que tu botô a gente nessa
robada?
ACEROLA
Ele tem Play Station!!!
LARANJINHA (furioso)
A gente vai se estrepar com Madrugadão!
ACEROLA
...Relaxa, o cara vai pagar a
passagem pra gente!
Plínio conversa
com o cobrador e pula a catraca.
LARANJINHA (para Acerola, sarcástico)
Ah, é, é?
PONTO
DE ÔNIBUS/ZONA SUL-EXT-DIA
Acerola e
Laranjinha descem correndo, pela porta da frente do ônibus,
que mal parou e já parte.
MOTORISTA
Seus vagabundos!
ACEROLA (para o motorista)
Vai se fodê!
Acerola e
Laranjinha se aproximam de Plínio, na calçada.
LARANJINHA (p.da vida)
Se tu nem tem dinheiro pro ônibus,
como é que tem Play Station?
INTERVALO
SALA DO
APTO DE PLÍNIO-INT-DIA
Acerola olha
a piscina, de água cristalina, embasbacado, através da porta
de vidro, na sacada.
ACEROLA
Uau!
Plínio chaveia
a porta. Laranjinha nota TAÇAS DE BEBIDA SUJAS, jogadas pelo
chão. A MÃE de Plínio, 45 anos, vestida com robe de seda, rímel
borrado nos olhos e cabelo despenteado, atravessa a sala. Ela
cambaleia e fuça as GARRAFAS VAZIAS no BAR. Pega algumas taças
do chão e as arremessa contra a parede, sussurrando palavras
incompreensíveis, e sai. Plínio se aproxima de Acerola. Eles
olham para a piscina.
PLÍNIO
Gostou? Foi limpa ontem!
ACEROLA (excitado)
Posso cair na piscina? De cuecão
mesmo?
PLÍNIO
Fica avonts!
LARANJINHA
E o seu pai? Cadê ele?
PLÍNIO
Meu pai tem centenas de casas,
quatro famílias, cortou minha mesada, e não mora com ninguém!
LARANJINHA (finge entender)
Ah!
PLÍNIO
Mas e aí? Você são trafica? Ou
só aviãozinho?
LARANJINHA
Não é porque a gente mora na favela,
que tamo metido com o tráfico!
PLÍNIO
Que pena...
Acerola repreende
Laranjinha, com o olhar.
ACEROLA (bancando o
fodão, para Plínio)
A gente tem uns contato...Somos
dos grandes!
Laranjinha
observa um ALCE DOURADO, com uma TOALHA DE BANHO, pendurada
no corno. Acerola abre a porta da sacada. Plínio tecla, qualquer
nota, no PIANO DE CAUDA BRANCO.
PLÍNIO (pensativo)
...Acerola e Laranjinha...(sarrista)
Isso é nome de mané!
ACEROLA
Lá no morro, quem tem nome de
fruta, é quem manda, tá ligado?
Plínio se
joga no sofá.
PLÍNIO (malicioso)
Se são trafica, então têm como
me arranjar pó, não têm?
ACEROLA
Claro! (½ pausa). Laranjinha
é o patrão!
Laranjinha,
surpreso, se vira para Acerola.
PLÍNIO
Troco o Play Station por
farinha. Que tal?
Acerola tira
a roupa, fica só de cueca e pula na piscina.
ACEROLA (feliz)
Fechado!
PLÍNIO (para Acerola)
Quer um refri, brother?
ACEROLA
Manero!
LARANJINHA (nervoso)
Eu pego o refri. Onde é
a cozinha?
COZINHA
DO APTO DE PLÍNIO-INT-DIA
Laranjinha
olha o que tem dentro da geladeira, quase vazia. Ele vê um pedaço
de QUEIJO GORGONZOLA, o pega, o cheira, e faz careta.
LARANJINHA
Eca! Tá podre!
Laranjinha
põe o queijo de volta, e vê um POTE de CAVIAR aberto. Ele pega,
com os dedos, um pouco do caviar.
LARANJINHA (cheirando os dedos,
enojado)
Eles comem cocô de peixe! Que
nojo!
Laranjinha
limpa os dedos na bermuda, pega um REFRIGERANTE EM LATA, no
fundo da geladeira, e a fecha.
LARANJINHA (OFF)
...Entra de cueca na piscina o mané e me deixa com o rojão
na mão! Agora EU é que tenho que me vira!
SALA DO
APTO DE PLÍNIO-INT-DIA
Plínio dança,
encarnando a letra da música Corpo de Lama, de Chico
Science que toca. Da sacada, Acerola entra, molhado, pega
a toalha no corno do alce e se enxuga.
ACEROLA (tossindo)
Que gosto de merda tem essa água!
Plínio
vai até a ESTANTE e desliga o SOM.
PLÍNIO
É cloro! Vocês não usam cloro
na favela?
Acerola veste
a camiseta. Plínio se joga no sofá,
cruza os braços, suas pernas chacoalham sem parar. Acerola
senta no sofá e o imita. Laranjinha chega, joga o refrigerante
para Acerola e tira algo do bolso da bermuda.
PLÍNIO (excitado)
E ai, cadê?
Laranjinha
joga UMA PETECA de cocaína para Plínio. Acerola arregala os
olhos, surpreso com a peteca.
PLÍNIO (abrindo a peteca)
Show!!
Plínio vai
até o piano de cauda. Acerola o acompanha com o olhar, dá um
gole do refrigerante e se aproxima de Laranjinha.
ACEROLA
(curioso)
O cara
tinha e nem sabia?
FLASH
BACK/ COZINHA DO APTO DE PLÍNIO-INT-DIA
Laranjinha
arranca um pedaço de plástico do saco de uma lixeira, o som
do rasgo é bem intenso.
VOLTAMOS
À SALA
Uma
carreira, larga e comprida, está esticada, de maneira grosseira,
em cima do piano.
FLASH
BACK/COZINHA DO APTO DE PLÍNIO-INT-DIA
Detalhe
da mão de Laranjinha que, de uma colher, despeja “pó branco”
no pedaço de plástico. Laranjinha fecha o plástico, dando um
nó e o chacoalha. Som de moedas chacoalhadas.
VOLTAMOS
À SALA
Plínio
em frente ao piano fecha e guarda a peteca no bolso da bermuda.
PLÍNIO
Alguém
tem nota?
Acerola
tira de sua bermuda uma nota de dez reais e dá para Plínio.
ACEROLA
Toma
aí!
LARANJINHA
(repreendendo Acerola)
Tu
pirô?! A grana nem é nossa!! Como é que vamu comprar o rádio
do Madrugadão?
ACEROLA
Relaxa,
mermão! O cara devolve depois.
Ouvimos
o cafungar longo de Plínio.
LARANJINHA(perdendo
a paciência)
Ó,
se tu quiser, tu se ferra sozinho, porque eu já fui!
PLÍNIO
Nossa!!
É da boa!! Arde até as bolas!
ACEROLA
(malicioso)
Fala
logo, tu robô de quem esse pó?
FLASH
BACK/COZINHA DO APTO DE PLÍNIO-INT-DIA
Na
mão de Laranjinha, uma “PETECA” perfeita de cocaína. Ao lado
dela, na mesa, um pote onde está escrito SAL. Neste momento,
reconhecemos a cozinha de Plínio. Som de caixa registradora.
VOLTAMOS
À SALA
Plínio,
alucinado, coça o nariz, começa a pular, a fazer alongamento
com os braços, desordenadamente.
PLÍNIO
Nooosa!
Maluco, tô ligadão!
Acerola
tem os olhos arregalados para Laranjinha.
LARANJINHA(irônico,
para Acerola)
Nem
tudo que é branco é pó!
PLÍNIO
(para Acerola, elétrico)
O Play
Station e minhas latas de sprays são de vocês, é só arranjar
mais dessa cocaine!
Laranjinha
sai, rumo à porta.
ACEROLA
(para Plínio)
Sério?
Belê, então!
Laranjinha
destranca a porta.
ACEROLA
(aflito)
Deixa
de ser estraga prazeres, Laranjinha!
PLÍNIO
(escorrendo o nariz)
Preciso
andar, falar! Tô doidão! Vou pegar os bagulhos, e a gente
vai nessa. Me espera!
Plínio
sai. CLOSE na nota de dez reais, em cima do piano.
CAMELÔS-EXTERNA-DIA
BARRACAS
DE CAMÊLOS estão armadas nas calçadas. VENDEDORES AMBULANTES
anunciam seus produtos. CLIENTES compram, pegam e levam as mercadorias.
Laranjinha carrega uma SACOLA. Acerola, orgulhoso, carrega uma
CAIXA, e abraça Plínio.
LARANJINHA (para Plínio)
Passa a nota de dez!
PLÍNIO
Que nota?
Laranjinha
olha para Plínio, ameaçador.
PLÍNIO (mexe nos bolsos)
Não está comigo.
Juro!
Laranjinha,
irritado, vai até o CAMELÔ que vende eletro-etrônicos, tira
da sacola uma lata de spray, a mostra para o camelô, e aponta
um rádio, sugere troca de mercadorias. O camelô balança a cabeça
negativamente. Laranjinha fala algo, ele sorri, e faz sinal
positivo. Laranjinha volta.
LARANJINHA (para Acerola)
Dá o Play Station!
ACEROLA (agarra com força a
caixa)
Ah, não! Nem fu!
LARANJINHA (p.da vida)
...Tu tem outra solução?
½ pausa.
Plínio parece pensar, coça a cabeça, e dá um pulo.
PLÍNIO (empolgado)
Tem duas soluções.
ACEROLA (eufórico)
Qual?
PLÍNIO
A primeira. (1/2 pausa)
E a segunda.
ENTRADA
DO MORRO-EXT-DIA
Plínio masca
um palito de dente e carrega a CAIXA DO RÁDIO. Acerola dá a
caixa do Play Station para Laranjinha. PESSOAS DA COMUNIDADE
descem, outras sobem o morro, todas olham atravessado para Plínio.
Percebemos, pela primeira vez, um olhar diferente, carinhoso,
de Laranjinha sobre Plínio.
PLÍNIO (empolgado)
Vou ser o único branquinho, dos
meus amigos, que vai entrar na moral nas favelas.
ACEROLA (para Plínio)
Tu já provou que pode ser malandro.
Conseguiu na lábia, sem precisar de tostão, o rádim de pilha.
LARANJINHA (irônico)
Apesar de ter sido a TERCEIRA
solução.
ACEROLA (para Plínio)
Mas agora, a parada é o seguinte:
PLÍNIO
Quero chegar na bandidagem, na
maior pressão!
ACEROLA
Tu num arreda o pé daqui! Tem
uma entidade acima de mim! Vô te aprender a ser bandido,
tá ligado?
PLÍNIO
Qualé? Vou subir com vocês!
LARANJINHA (para Plínio)
Eu fico com você, na hora
certa a gente sobe.
Acerola sai.
PLÍNIO
Como é que a gente vai saber QUANDO
é a hora certa?
COZINHA
DO BARRACO DE ACEROLA-INT-DIA
Mirta passa
esmalte na unha, sentada à mesa. Acerola entra.
MIRTA
Onde é que tu se meteu?
Madrugadão tá te procurando num é de hoje!
ACEROLA (cuidadoso)
...Sabe aquele teu amigo?
MIRTA (desdenhosa)
Qual deles, Acerola?
ACEROLA
Aquele.
MIRTA
Dá pra falar a minha língua?
Mirta limpa
com palito de dente a unha.
ACEROLA
...O Reynaldão!
Mirta machuca
o esmalte da unha, com o palito.
MIRTA (olha a unha borrada)
Droga! Olha o que tu me fez fazer!
(MT) Em que confusão tu tá metido?
ACEROLA
É só dessa vez, prometo. (fingindo
desespero)
...É caso de vida
ou morte!
Mirta fecha
o esmalte.
MIRTA (bem tranqüila)
Se você arranjou problema, agora
ache a solução!
INTERVALO
BOCADA
DO REYNALDÃO/MORRO-EXT-DIA
No final
da escadaria, TAL, branquelo e ruivo, e QUAL, negro azul, ambos
de vinte anos, mal encarados e armados com metralhadoras, fazem
vigia na porta da bocada. Acerola sobe o último degrau, ofegante,
coça a cabeça, nervoso, tenta parecer seguro.
ACEROLA
Dá pra descolar um papelote?!
QUAL
Desde quando tu é vapor?
TAL
Reynaldão tá atendendo cliente
fora! (desconfiado)
Tu tá de cagueta, é?
ACEROLA
Não, não é nada disso... É pra
impressionar uma mina!
TAL
Que mina? (gargalha) Tu
é mó cabaço!!
QUAL (desconfiado)
...Cadê a bufunfa?
ACEROLA
Eu não posso botar na conta?
TAL
Rapa, tu tá pensando que aqui
é mercearia?!
Qual pisca
para Tal que sorri para ele. Tal dá um passo para frente e empurra
Acerola com o cano da metralhadora.
TAL
A mercearia fica lá embaixo, palhaço!
Acerola perde
o equilíbrio e rola escada abaixo, até:
LARGO/MORRO-EXT-DIA
Caído no
chão, Acerola ergue a cabeça e vê, debaixo pra cima, Madrugadão,
a sorrir diabólico, acompanhado de GAGUINHO, gago, e CAOLHO,
caolho, ambos negros, de 18 anos. Acerola, tremendo de medo,
se levanta, limpa a poeira da roupa, sem coragem de encarar
Madrugadão. Gaguinho levanta o queixo dele.
GAGUINHO (gaguejando)
...Cadê o raudinho que
tu mais Laranjinha ficô de trazer aqui, até o mei dia.
MADRUGADÃO (cínico)
Vou adivinhar: Tu não comprô,
num colocô a pilha, mas gastô a grana!
ACEROLA
Não!! Eu comprei o rádio, (gagueja)
mas você não vai acreditar!
Próximo dali
Plínio surge, a sorrir, imponente, cabelo ao vento.
PLÍNIO (para si)
Essa é a minha hora, a hora certa!
MADRUGADÃO (bravo)
Onde foi pará o rádinho? (zomba)
Dentro da sua “aceroula”, Acerola?
RISADAS de Gaguinho e Caolho.
O sorriso
de Plínio fecha, ele olha para o lado e sai. Imponente, chega
junto a:
Acerola que,
ao ver Plínio, fica mais nervoso, percebemos que ele começa
a suar.
PLÍNIO
Belê, Acerola? (valente, para
Madrugadão) Perdeu alguma coisa?
Madrugadão
arranca a caixa do rádio da mão de Plínio.
MADRUGADÃO
Perdi sim, mas já achei.
Plínio toma
o rádio de Madrugadão. Acerola faz um sinal para Plínio ficar
quieto.
PLÍNIO (para Madrugadão, mostrando
o rádio)
Isto é do meu amigo Acerola, trafica
da pesada, tá ligado?
Madrugadão
cutuca Caolho e Gaguinho. Eles riem.
MADRUGADÃO
Olha a do cara!
Plínio imita
a postura clichê de bandido.
MADRUGADÃO
Acerola? Traficante? (pára
de rir) E tu, branquinha, como se chama, Mexerica?
PLÍNIO (pensa alto, vaidoso)
...Nome de fodão! (para Madrugadão)
É isso aí, respeito!
Madrugadão,
Caolho e Gaguinho se olham, cúmplices, e depois encaram Acerola
e Plínio.
Próximo do
largo, Laranjinha, aflito, olha para todos os lados.
LARANJINHA
Caralho! Onde o cara se meteu?
Plínio vê
Laranjinha e grita.
PLÍNIO
Ai, Laranjinha, chega aí!
Laranjinha
se vira e vê Plínio peitando Caolho.
PLÍNIO (para Caolho)
Agora somos 3 contra 3, e aí,
caolho, vai encarar?
CAOLHO (para Gaguinho,
sério)
Cumé que ele sabe meu nome?
Laranjinha
chega, cabisbaixo. Gaguinho pega a sacola da mão dele, e despeja
as latas de spray no chão. Caolho pega a caixa do Play Station.
Madrugadão olha a caixa com interesse.
MADRUGADÃO (para Caolho)
Confisca!
Madrugadão
estrala o dedo e, junto com Caolho e Gaguinho, eles sacam a
arma, escondida, de trás de seus calções. Caolho põe a arma
na cabeça de Laranjinha; Gaguinho, na de Acerola; Madrugadão,
na de Plínio. Laranjinha fecha os olhos. Plínio ri despreocupado.
Acerola quase chora. O eco de um tiro congela a expressão preocupada
e atenta de Madrugadão.
WALKY TALKY DE MADRUGADÃO
(voz masculina OVER)
Invasão dos homi na bocada! Vai
ser pega pra capá!
Madrugadão,
Caolho e Gaguinho, nervosos, apontam suas armas em direções
opostas, e saem correndo. Caolho abandona a caixa de Play
Station no trajeto. MORADORES correm e se fecham dentro
de seus barracos.
VÃO DO
BARRACO-EXT-DIA
Laranjinha
empurra Plínio para o fundo e se junta à Acerola, na entrada
do vão. Apreensivos, eles olham o movimento externo. Ouve-se
TRÊS TIROS SEGUIDOS, distantes. Laranjinha olha para o fundo
do vão, Plínio sumiu. Acerola cutuca Laranjinha e aponta para
fora. Ouve-se um TIROTEIO DISTANTE, começar tímido.
LARGO/MORRO-EXT-DIA
O TIROTEIO
RESSOA. Plínio tem uma peteca aberta na mão. Ele enfia todo
o “pó” no nariz, joga fora o plástico, e abre os braços como
se fosse Cristo Redentor, girando, lentamente.
PLÍNIO (grita)
Podem vir! Meu corpo é a prova
de bala!
RUAS DO
MORRO-EXT-DIA
TRAFICANTES,
negros e jovens, armados, correm pelas ruelas, e trocam tiros
com POLICIAIS. A imagem é vertiginosa, como se um camera-man
acompanhasse a ação, correndo. Uma caixa d’água é furada por
uma bala. A água começa a escorrer.
BOCADA
DO REYNALDÃO/MORRO-EXT-DIA
Tal e o Qual
atiram, sem parar, para baixo das escadarias contra TRÊS POLICIAIS,
que se esquivam das balas, e sobem as escadarias. Tal e Qual
entram num barraco, e fecham a porta. Um policial, arma apontada,
empurra a porta com o pé.
LARGO-EXT-DIA
Plínio vê
um carrinho de cacarecos abandonado, cheio de papelão. Ele o
puxa para o meio do largo, e fica atrás dele, fingindo portar
uma espingarda. O tiroteio, do alto do morro, começa a ficar
intenso.
MONTAGEM
PARALELA
VILAREJO/PLAYMOBIL
(Apenas
Plínio, neste delírio, tem corpo humano do tamanho dos bonecos
de Playmobil. O cenário, apaches, cavalos, e tudo o mais são
peças de Playmobil)
Plínio, vestido
de cowboy, está atrás de uma carroça abandonada,
no meio da rua deserta. Ele porta uma espingarda. Seu olhar
é tenso. Ouvimos o UIVO DE COYOTE, clichê de filme western.
FUSÃO PARA:
VOLTAMOS
PARA O LARGO
Plínio olha,
tenso, para cima. OUVE-SE um HELICÓPTERO sobrevoar o morro.
A POEIRA levanta. Plínio rola na terra. FUSÃO PARA:
VOLTAMOS
PARA O VILAREJO/PLAYMOBIL
Plínio, espingarda
na mão, rola na terra e monta num cavalo. A poeira levanta.
Ouve-se GRITOS APACHES de guerra e CAVALOS GALOPANTES. MÚSICA
WESTERN dinâmica em BG. FUSÃO PARA:
VOLTAMOS
PARA O LARGO
Plínio galopa
em cima do carrinho. Balas de fuzis perfuram os barracos ao
redor do largo. FUSÃO PARA:
FLORESTA/PLAYMOBIL
Plínio, em
pé no cavalo, ajeita o chapéu, gira a cabeça para trás, em direção
aos APACHES que cavalgam atrás dele, e atira. Vemos um TRONCO
GROSSO, numa árvore, tombado, à frente de Plínio. Música western,
em BG, sobe. FUSÃO PARA:
VOLTAMOS
PARA O LARGO
Plínio está
em cima do carrinho, na mesma posição da cena anterior. Corpo
pra frente, cabeça pra trás. Ele finge atirar. Ouvimos um único
TIRO VIBRAR.
ANIMAÇÃO
Uma bala
gira, em câmera lenta, e segue sua trajetória.
VOLTAMOS
PARA FLORESTA/PLAYMOBIL
No auge da
música western, do som de cavalos galopantes, e gritos de guerra
apaches, Plínio, em pé no cavalo, desprevenido, vira-se, e choca-se
com o tronco. Ouve-se um ESTRONDO. FUSÃO PARA:
VOLTAMOS
PARA O LARGO
Plínio cai
do carrinho, em câmera lenta, e bate a cabeça no chão. Ouve-se
o eco final de um TIRO. SILÊNCIO.
FINAL
DA MONTAGEM PARALELA
QUARTO
DA MÃE DE PLÍNIO-INT-DIA
A mãe de
Plínio dorme, largada, de robe, na cama. Ao seu redor vários
FRASCOS DE COMPRIMIDOS. Calmantes e Ansiolíticos.
NARRADORA JORNALÍSTICA (OFF)
A polícia invadiu hoje o Morro
de Santa Marta. Um tiroteio assolou a comunidade: um estudante
da zona sul foi baleado. (...)
A TELEVISÃO
está ligada em frente à cama. Nela, a seguinte imagem:
LARGO/MORRO-EXT-DIA
Policiais
carregam vários tipos de armas e pacotes de cocaína. Atravessam
o largo e descem o morro. Conduzem adolescentes algemados, uns
de cabeça baixa, outros com os rostos encobertos por camisetas.
Entre eles Tal e Qual. No canto da imagem, vemos as pernas estiradas
de Plínio e os pés de Laranjinha a se aproximar do corpo de
Plínio.
NARRADORA JORNALÍSTICA (OFF)
O motivo principal da batida policial
não foi bem sucedido. Reynaldão, fornecedor de armas e drogas
para a facção criminosa DAD, não foi encontrado. FADE
IN NO ÁUDIO
EFEITO DE
TRANSIÇÃO
LARGO/MORRO-EXT-DIA
Laranjinha
se aproxima lentamente do corpo de Plínio estirado no chão.
Os MORADORES, aos poucos, saem de seus barracos, olham com tristeza
os furos de bala nos barracos. Laranjinha pára, chocado, diante
do corpo de Plínio.
LARANJINHA (indignado)
O cara nem era pra estar aqui!
Acerola corre
em direção a caixa do Play Station, a alguns metros dali.
Ao caixa está perfurada de balas. Acerola choraminga, ao ver
os furos nela. Laranjinha recolhe, lentamente, as latas, intactas,
de spray, e as coloca na sacola.
LARANJINHA (triste, para Plínio)
Estúpido! Tinha tudo e desperdiçou!
ACEROLA (sacode a caixa, trágico)
Olha o que virou?!
LARANJINHA (para Acerola, bravo)
Tu nem tem televisão! Se liga!!
Plínio abre
os olhos. Laranjinha dá um pulo de susto. Plínio passa a mão
no braço, num pequeno arranhão de bala, com um pouco de sangue.
Plínio se levanta, lentamente. Olha o redor. Vê sangue esparramado
pelo chão, os barracos com furos de bala, crianças CHORAM dentro
deles, a água que escorre na rua, virando lamaçal. Seus olhos
expressivos, de choque e tristeza.
Acerola se
vira, vê Plínio, e faz o sinal da cruz, pensa ver uma assombração.
Laranjinha sorri, tímido e feliz, para Plínio.
PLÍNIO (para Laranjinha)
...Foi mal...Eu não tinha
noção...
Acerola se
aproxima, cabeça baixa, de Plínio e Laranjinha.
PLÍNIO
... Eu só não queria passar mais
uma tarde sozinho...Foi mal, eu não tinha noção.
LARANJINHA (para Plínio)
Tá na hora de ir pra casa.
Plínio abraça
Laranjinha com força. Acerola, envergonhado, dá um tapa, carinhoso,
nas costas de Plínio.
ACEROLA (para Plínio)
Sabe o caminho de volta?
Plínio não
responde, apenas balança a cabeça afirmativamente e sai. Plínio
caminha e, aos poucos, se distancia de Acerola e Laranjinha.
O SOL começa a se pôr.
ACEROLA
Depois de hoje é amanhã, certo?!
(MT) Vô pintá um muro de branco e tu faz um desenho bem
bonito...Em homenagem ao Madrugadão!
LARANJINHA
Manero. (metido) Com meu
talento, talvez a gente se safa da punição, e ainda ganha uma
grana extra!
Plínio, de
costas, desaparece num horizonte alaranjado. O sol se põe completamente.
PLÍNIO
“Nem tudo que é branco é pó”.
(solta, devagar, um sorriso). Essa foi boa!
FIM
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