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 NUMA TANDEM: 650 KM, 9 DIAS, 1 VIAGEM 

A 8º 

De capela do saco a carrancas

Viviane Fuentes e Mathieu Gillot

 

No fim desta trilha mineira, à esquerda, a Serra de Carrancas

 

Fotos dessa viagem estão em http://www.flickr.com/photos/numatandem

 

   

Paredões verdes, Ipês roxos e amarelos no caminho até a chegada no Hotel Fazenda do Engenho - Diário de 16/08/05, quarta-feira

O quartinho onde dormimos era muito singelo, os mosquitos nos atacaram durante a madrugada, o colchão, fino e puído, acabou com as nossas costas, mas após o banho, de gota em gota, entramos em outra sintonia.

Na noite anterior havíamos participado como ouvintes de uma conversa inflamada sobre política local, o anfitrião varou a noite, empolgado com o tema, mas seis da manhã nosso café já estava posto à mesa, com direito a pão caseiro.

O orvalho mandava na temperatura do dia e a ar estava envolto de neblina. Sentindo um pouco de frio, coloquei meu polar e só o tirei uma hora depois, já pedalando. Terminado o café da manhã na Capela do Saco, informamos-nos da direção a seguir.

Antes de sairmos, Seu Muchacho tirou uma foto nossa, notamos já haver outras fotos de ciclistas na parede de seu bar, talvez logo estivéssemos em seu “hall”. Montamos em nosso cavalo prata e seguimos a estrada, sem transportar ouro para a Coroa.

A previsão do trajeto era de 80% de terra e 50 km a percorrer, aproximadamente. Nada de placas, durante horas. No início do pedal, ficamos sem saber qual vão da bifurcação desembocaria numa propriedade particular ou era continuação da estrada.

Fomos aquecendo o corpo docemente, a brisa gelava o nariz. Deslizávamos um trecho de mato que nos mostrava um horizonte incerto, aos poucos, fomos deixando o rio Grande para trás, seguindo em direção ao Cerradão.

Retas e subidas suaves faziam com que o som e o ritmo do pedal funcionassem como um mantra. Mathieu e eu pedalávamos calados, aproveitando a fresca sensação, observando o despertar do dia e das flores selvagens à beira da estrada.

Nada de carros, cavalos ou transeuntes. Após duas horas de pedal, cruzamos um caminhão bem antigo, acho que transportava esterco. Deduzimos então que estávamos no caminho certo, fazendo o mesmo percurso, só que no sentido inverso.

Mais alguns quilômetros desbravados, coloca-se em nosso caminho, um “canyon”, uma chapada verde destoante da paisagem plana. Inusitada, ali, perdida e paralela à estrada, à nossa esquerda.

Na verdade, tratava-se da famosa serra da região, a Serra de Carrancas, que tem 25 km de extensão e altitude máxima de 1378 m - uma experiência inenarrável, pedalar com ela, ao seu lado.

Protegidos pela encosta surreal, ficamos meio abobados com sua beleza, mas aos poucos, foi ficando para trás e nem percebemos o tempo passar, atravessamos um braço estreito, e saímos numa rodovia asfaltada, margeada por cercas de arame.

O sol já estava quase no meio do céu, rendido pelo azul claro. Um carro passou por nós e o motorista, olhando espantado para tandem, acenou com a mão, fazendo sinal de “positivo”, creio que por solidariedade do aperreio que passaríamos dali a pouco.

Aproveitamos para tomar água, e comermos um pedaço de pão caseiro, visto o que nos aguardava. Mais adiante, uma longa e íngreme e muito inclinada estrada asfaltada em forma de zigue-zague nos encarava.

Notei nos olhos discretos do Mathieu, um assombro. Mesmo expectorando durante a viagem, eu estava bem, mas ali a gripe assumiu personalidade. Hora de ingerir calorias para encarar o desafio! Estava certa de que não conseguiria pedalar até o fim.

Tranqüilo, Mathieu disse que, no mínimo, colocaríamos a marcha “devagar e sempre”, e se fosse o caso, pararíamos alguns segundos, injetaríamos água em nossos corpos e seguiríamos.

O legal de uma viagem como essa é que não é competição, não há pressão, faz-se tudo no seu tempo, ter a percepção de não só trilhar o caminho, mas ser ele, sentir a sinuosidade de uma subida, por exemplo, e se angular nela.

E lá estávamos nós na metade da subida que nos arrancou esforços redobrados, acredito que Mathieu puxou bem mais do que eu – estávamos mais lentos que um pedestre, mas não paramos, não desistimos, nem empurramos a tandem.

Ao chegar ao topo, uma curva previa um suave, gostosa e longa descida. Uma nova paisagem se revelou com aspecto bucólico, todavia mais próximo à civilização. O prêmio: a velocidade e a chance de voar - atingimos 84 km/h!

A cidade para qual nos dirigíamos teve sua importância na época do ouro, bandeirantes investiram suas fichas em Carrancas, mas parece que o tiro saiu pela culatra, a forte produção de ouro se deu mesmo em São João do Del Rey e em Lavras.

A cidade que outrora foi chamada de outros nomes, permaneceu como Carrancas. Duas rochas escavadas, na procura dourada, numa serra da região, ficaram com a forma de dois rostos, por isso o nome.

A 411 km de São Paulo ou a 286 km de Belo Horizonte, tem aproximadamente 4 mil habitantes, sete cachoeiras ao seu redor, muita copaíba e ipês amarelos, e os “carrancudos’ apostam no turismo ecológico.

Chegamos ao centro da cidade calma e morna. Já passava do meio-dia. Paramos na praça central, descemos da tandem. Algumas crianças se interessaram pela bicicleta, e nos encheram de perguntas a respeito dela.

Mathieu repousou à sombra, eu cliquei algumas fotos. Passado o momento preguiça, fomos almoçar num restaurante, ao redor da praça. Um casal jovem nos atendeu com muita simpatia. No cardápio, carne de panela, com direito, é claro, de arroz e feijão.

Após o almoço, nos informamos sobre hotéis, queríamos um que fosse fora da cidade. O casal nos sugeriu o Hotel Fazenda Engenho, e nos explicou como chegar até lá. Pedalamos durante a digestão, por uns 10 quilômetros, de volta ao mato. 

O sol cozinhava qualquer galo na panela, com o fogo desligado, mas o passeio era agradável demais para nos indispormos. Chegamos à fazenda que, segundo o proprietário, um senhor falante e simpático, foi o precursor em validar o conceito de Hotel Fazenda.

Apenas nós de hóspedes. Num meio de semana e fora de temporada, imperávamos no local. Nosso quarto era agradável e rococó. Despencamos as bagagens, tiramos a poeira do corpo, com uma gostosa ducha e fomos passear, depois de completados 54 km.

A fazenda produzia leite, frutas e verduras, tinha gado e fontes de água. Era auto-suficiente e pequena produtora da região – e o hotel lotava em veraneio. ...Viver no meio do mato, independente da cidade... - chegamos a vislumbrar a idéia.

No terreno, um laguinho com garça, e muitos animais soltos. Galinhas, galos, pintinhos. Gansos, cavalos, bois, vacas, cachorros, No céu, dois ou três Martins Pescador, pra lá e pra cá. Do jeitinho que uma fazenda deve ser.

No jantar, para finalizar nossa jornada, comemos uma saborosa galinha caipira, salada com 0% de agrotóxico – o tomate e o pepino pareciam outro tipo de verdura. É claro, eu me acabaria nos doces mineiros, quatro variedades, experimentando todos.

Doce de cidra, de abóbora, figo em calda, Romeu e Julieta, saboreei isso tudo numa fazenda de 240 anos. Santa gula! O bom é que sem nenhuma culpa, no dia seguinte queimaria todas as calorias ingeridas na(s) sobremesa (s)!

Proseamos bastante com a filha e o pai, proprietários da fazenda, enquanto degustávamos a pinga famosa da região, envelhecida em barril de carvalho. Conhecemos o resto dos aposentos, feitos de pau-a-pique, óleo bálsamo e telha-roxa.

Estávamos numa fazenda do século XVII, nos interando um pouquinho da história. Depois do bom papo, dissemos boa noite aos anfitriões e nos retiramos. A noite estava do jeito que lobisomem gosta, com lua cheia.

Antes de dormir, ficamos sob os efeito do luar e aproveitamos para namorar um pouco.

 
 

Fotos dessa viagem estão em http://www.flickr.com/photos/numatandem