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 NUMA TANDEM: 650 KM, 9 DIAS, 1 VIAGEM 

A

De Ouro branco  a carandaí

Viviane Fuentes e Mathieu Gillot

 

Tandem aguarda voltarmos da recepção do Hotel fazenda Pé do Morro

 

Fotos dessa viagem estão em http://www.flickr.com/photos/numatandem

 

   

CHEGADA NA FAZENDA PÉ DO MORRO – Diário de 13/08/05, sábado

Naquele momento estávamos exatamente a dois Km de Ouro Branco e a 18 de Conselheiro Lafaiete. Nenhuma sensação de missão não cumprida ou frustração nos tomava.

Da recepção, voltamos à tandem para pegar nossas bagagens - por sinal, ela não deu um pio, rodou sem vacilar, Mathieu a construiu a partir do quadro (traseiro) de uma Scott GO quebrada e desenhou o quadro da frente; muniu-a com suspensão dianteira Cannondale Moto FR, amortecedor traseiro: DT Swiss SSD 210L, freio dianteiro XT disc diam 205 mm, freio traseiro XT disc diam 160mm, pedivela XT, câmbio: SRAM X7 e rodas de aro technium e cubo XT.

A tandem” significa “a dois” em francês, e esse tipo de bicicleta tem que ser robusto, ela é 2X2 (duas pessoas em cima de duas rodas). No nosso caso, 20 quilos (de bicicleta) carregavam 150 quilos (Mathieu, as bagagens e eu).

Iniciamos o ritual.

Desamarrar, descarregar, carregar. No quarto, bagagens a postos. Separar o que estava úmido para secar, lavar o que vestíamos ou a blusa ou a bermuda (tínhamos três mudas de roupa para cada um). E finalmente, aduchar!

Depois de aliviar as costelas debaixo do jato d’ água, trocamos de roupa, refrescamos os pés com chinelos e saímos para esticar as pernas. Sentia-me na fazenda de meus avós - apesar deles nunca terem uma, apenas um rancho - a hospitalidade mineira é famosa, adoram um bom papo.

Ainda havia almoço feito em fogão à lenha. Às cinco da tarde Mathieu eu e comíamos uma pratada de arroz e feijão e chinchim de galinha. Bão demais!! É engraçado, nunca fiz questão de arroz e feijão, mas durante toda a viagem da Estrada Real, meu lema era “posso dormir num muquifo, mas quero comer arroz com feijão”.

Para os fanáticos em dietas, acreditem, uma pedalada como essa não emagrece, ela muito carboidrato. Eu não afinei um milímetro sequer, com a mesma barriguinha que fui, voltei. Tampouco engordei. O tônus ganhou um pouco de força e definição muscular. Mathieu ficou mais forte nas coxas e traseiro.

Terminamos de almoçar e aproveitamos o resto da luz do dia para fotografar. Havia animais pelo terreno da fazenda: cavalos, papagaios, galinhas. Um jocoso trio de patos caminhava em fila, visto do ponto de vista de um humano, iam para lugar nenhum e em todas as direções.

O momento especial do passeio foi a Capela de Santana. Suas ruínas foram envolvidas com caixa de perfis de aço e o vidro, é mais que charmosa demais, sô! Assinado pelo arquiteto mineiro Éolo Maia (1942 a 2002).

Uma neblina fog envolveu os morros ao nosso redor enquanto o céu se alaranjava. A luz do dia havia se esvaído e demos por encerrada nossa jornada. Antes das nove da noite já estávamos dormindo ao som dos grilos.

2º DIA DE PEDAL - Diário de 14/08/05, domingo

Acordamos dispostos, sem nenhuma dor muscular no corpo. Fizemos à seqüência matinal num dia ensolarado, sem uma nuvem no céu para contar história. Banho, recolher roupas, acessórios, guardar tudo, fechar alforjes, abastecer água, separar barrinhas. Se alimentar!

Tomamos um café da manhã reforçado com direito a muitos pães de queijo quentinhos, frutas, queijo branco, geléias, broa, café, suco. Mathieu que não tem o costume de comer pela manhã, mandou ver.

Colocamos e amarramos as bagagens na garupa da bicicleta. Mathieu verificou se ela estava tecnicamente capacitada a nos acompanhar. Tudo perfeito! Pé na no pedal. Próximo destino: Fazenda Engenho Velho dos Cataguases.

Mas antes, passamos por muitos lugares. Foi um domingo intenso de passeio, não só de pedalada.

Visitamos a Casa de Tiradentes (a caminho de Ouro Branco), onde os inconfidentes se reuniam para arquitetar idéias revolucionárias.

Vimos pela primeira vez uma gameleira, árvore que jorra leite se ferida, mas aquela era famosa por ter os destroços do corpo de Tiradentes dependurados nela em 1792.

Urubus e corujas guardavam a árvore copada, pareciam habitués.

A jornada prometia 30% de asfalto, passando por uma larga rodovia, e os outros 70% de terra.

Iríamos aprender naquele dia que quando alguém se perde no sertão mineiro, a única chance de se sair de lá é com alguém sóbrio da região, caso contrário, a pedalada poderia durar 25 anos.

Pedais por pedais, chegamos a Conselheiro Lafaiete.

Não existia, talvez ainda não exista, um mapa rodoviário da ER que compreende 117 municípios. Pedimos informações para nos orientarmos no sentido de Queluzito – era a única referência que tínhamos.

Cruzamos a tal rodovia do itinerário, uma parte não muito simpática do trajeto, até encontrarmos a estrada de terra que nos levaria a Fazenda do Engenho. Depois de alguns Km pedalados, avistamos um pequeno povoado e decidimos fazer uma parada.

Era Queluzito e, como toda a cidade do interior, tinha uma pracinha muito bem cuidada, com uma enorme fonte de água jorrando água e uma singela igreja singela. Domingo mais que domingo mais que tranqüilo ao meio-dia. Conversamos com algumas crianças “ciclistas” que se mostraram muito curiosas a respeito do nosso veículo e, logo, partimos.

Rumamos a Minas Gerais profunda, sentido Prados. Passamos por pequenos povoados roceiros e, quanto mais adentrávamos, mais a terra se avermelhava. À beira da estrada, vimos vários fornos de tijolo, pareciam “igloos” de terra.

Em determinado momento uma ave não identificada deu o ar da graça no meio da estrada e, da maneira que apareceu, sumiu. Curiosos, paramos.

Eram seriemas, um pequeno bando que marchava num campo plano e verde. As tinha visto somente em fotos. Estavam longe, eram vestígios de sombra. Decidimos descer da bicicleta. Silenciosos, as seguimos por um campo verde, um metro acima da estrada.

Mathieu com a fotográfica eu com a filmadora. Enquanto meu marido procurava seriemas escorregadias, uma sensação de alegria começou a me possuir. Seria o tal “barato do esportista”? Endorfina com cerotonina?

Olhei a 360 º. Mato e terra. Terra e mato. Mais nada. De repente, me deparei com uma sombra na estrada. A minha. Não resisti, e a filmei. Estava tão excitada, comecei a dançar e sussurrar uma música inventada, achando tudo muito legal.

Mathieu se aproximou, sorriu ao ver minha euforia e apontou o dedo numa direção.

Ao longe, o bando de seriemas atravessava a estrada. Eram estranhas, mas graciosas com o charmoso penacho na cabeça e seus gambitinhos se pareciam com os meus. Foi difícil fotografá-las, qualquer movimento brusco, elas evaporavam e, logo, sumiram.

Voltamos à tandem. Guardamos as câmeras. Molhamos a garganta, o clima era seco. Voltamos a pedalar, esperando encontrar uma placa ou alguém que nos dissesse onde nos encontrávamos. Ainda não sabíamos, mas não estávamos na rota planejada.

Distraímos-nos vendo algumas águias nas copas de árvores secas, pareciam camufladas no tronco. Linda, imóveis. Soprou um vento frio, as aves bateram asas. O sol baixava, o dia escurecia. Ninguém passava. Nenhuma casinha, fazenda, boteco a vista. Nada.

Silêncio absoluto. Já completavam 70 Km pedalados. Nossas condições para seguir a viagem se complicavam. Pleonasmo à parte. Difícil saber a direção que não se sabe. Olhamos para todos os lados. Olhamos-nos. Estávamos perdidos. No sertão mineiro.

PERNOITE NO HOTEL FAZENDA ESTALAGEM

Ainda não sabíamos que dali a algumas horas só teríamos um objetivo. Chegar. Chegar a algum lugar. A água se esvairia, a noite chegaria, as pilhas dos faróis enfraqueceriam e nada de poesia.

Onde estariam os mineiros do sertão às quatro horas da tarde num domingo dia dos pais? – nos perguntávamos, quando um motoqueiro veio em nossa direção, pilotando uma DT em “alta” velocidade. Nem notou a minha mão abanando e logo desapareceu na poeira.

O que fazer? Seguir a pedalar entre marrom e verde e azul, terra, campo, céu. Todavia já era hora de sabermos que rumo tomar, logo escureceria. Tínhamos pouca água e eu começava a ficar exausta. Mathieu se mantinha calmo.

A estrada cor de trufa nos conduzia. Ao, longe um horizonte infinito. Um ruído ao vento reavivou nossas esperanças. Era o motoqueiro da DT, dessa vez, menos apressado. Voltava o trajeto - havia perdido o pedal de moto.

Pedimos informação. Nos olhos dele, o branco fora substituído pela vermelhidão. Não sabia onde ficava a Fazenda Engenho do Cataguases, tampouco quantos dedos tinham na minha mão. Mamado da pinga, partiu, exalando cheiro etílico pelos ouvidos.

Ficamos na mesma, mas agora havia uma bifurcação à nossa frente – que a veríamos mais tarde novamente. Optamos a uma direção no unidunitê. Não tínhamos mapa, apenas a leitura da experiência, pela região, do ciclista José Mauricio de Barros.

A linda paisagem do sertão mineiro permanecia deslumbrante, mas não a desfrutávamos tanto quanto antes. Ainda era agradável pedalar em morros levemente inclinados, com descidas suaves, mas o nosso ritmo começava a cair.

Colocamos a marcha “devagar e sempre” já analisando possíveis lugares para acampar. Tínhamos uma ótima barraca. Mathieu já começava a flertar com a idéia. Meu espírito não é tão aventureiro assim. Mas o que mais precisávamos era nos alimentar e hidratar.

O dia ia rumo ao pôr do sol. O céu sem nuvens escurecia lentamente. Os pássaros se calaram, não víamos mais animais. Parecíamos pedalar em círculos até que, finalmente, avistamos um anjo da guarda sobre rodas parado na estrada.

Perguntamos sobre a Fazenda dos Cataguases. Não conhecia. Perguntamos sobre a região. Conhecia. “Onde poderíamos comer e pernoitar?” Olhou bem para nós. Seu olho direito estava vermelho também - um inseto colidira com sua retina enquanto pilotava a CG.

Demos-lhe um pouco de água para lavar os olhos. Agradeceu-nos e, depois de muito pensar, indicou um vilarejo a 18 km dali (suei...). Disse que teria comida simples e lugar para dormir, a casa de uma senhora chamada talvez Dona Nena.

Um vento frio começava a soprar. Meu nariz escorria e o do Mathieu também. Seguro, a gripe se aproximava. Cada um havia almoçado três barrinhas e um pão de queijo, para mais de 70 km de pedal é pouco combustível.

Já tínhamos topado os 18 km, conscientes de que seria difícil pedalar no escuro, num caminho que não conhecíamos, quando o rapaz se lembrou de um lugar mais próximo para pernoitarmos, a 5 km de onde estávamos. “Acho que vocês vão gostar mais” e explicou como chegar.

“... Voltar, seguir até ao final da trilha de “Jacarandeiras”, direita esquerda sobe, direita esquerda desce...” E a informação já se misturara à dislexia... Resumo: Voltar.

Oito quilômetros depois, já era noite, pedalávamos sem farol. Avistamos pequenos pontos de luz e algo que parecia ser uma pousada no meio do breu. Entramos. Era enorme o terreno. Desci da bike e fui até a recepção dentro da mata. 

Era um hotel, finalmente, mas pensei que a atendente blefava comigo quando disse que, tivemos sorte, havia ocorrido uma desistência e, por isso, nos esperava um quarto “standard” pela bagatela de R$ 250,00. Tinha direito a jantar e café da manhã.

Eram quase oito horas da noite. Havia uma música de axé que se misturava aos gritos eufóricos de crianças. Não tínhamos idéia de que tipo de lugar era aquele, quase não havia iluminação na parte exterior. Era pegar ou largar. Pegamos.

Conduzimos a bicicleta por uma trilha de pedras. Começávamos a espirrar. A recepcionista abriu a porta do nosso chalé, nos entregou um papel com sugestões de "atividades" – só fomos saber o que significava aquilo na manhã seguinte.

Depois de 9h24m de pedal, descarregamos nossas bagagens. Parecia um sonho encontrar um quarto no meio do sertão mineiro. Finalizamos a jornada do dia em 79.89 km - do Hotel Pé do Morro (Ouro Branco) até o Hotel Estalagem (Carandaí).

Tomar uma ducha foi o mesmo que se afundar numa banheira plena de champanhe Cristal. Mathieu estava exausto, mas reconfortado, havia zerado o contador. Atingimos a velocidade máxima de 74 km/h e nossa média foi de 8,4 km/h - quando uma pessoa caminha rápido, ela está a 6 km/h.

Depois de tirar a poeira do corpo e vestir uma roupa limpa, era incrível, não nos sentíamos cansados. Uma preguiça gostosa tomava conta do corpo e aproveitamos a hora para ir jantar.

Mais de cem pessoas comiam no salão do restaurante - impressionante, a menina da recepção não havia blefado, o mundo inteiro estava ali.

Comemos - e em 20 minutos. Antes das nove da noite, com nariz escorrendo e começando a tossir, Mathieu e eu despencamos na cama. Tinha sido um dia “fora de mapa”!

 
 

Fotos dessa viagem estão em http://www.flickr.com/photos/numatandem