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 NUMA TANDEM: 650 KM, 9 DIAS, 1 VIAGEM 

A 8º 

De carrancas a caxambu

Viviane Fuentes e Mathieu Gillot

 

Sorvete Napolitano: 6 dias de viagem, 3 marcas diferentes - e com o uso de protetor solar!
 

Fotos dessa viagem estão em http://www.flickr.com/photos/numatandem

 

Adeus a Fazenda do Engenho, rumo as águas milagrosas da região de Caxambu- Diário de 17/08/05, quinta-feira

Olhar a fazenda se distanciar num dia ensolarado, propício para não fazer nada, apenas estar no meio do mato, sem pensamento, sem nada para se preocupar, bem ao vento, deu certa tristeza...

Mas ao olharmos adiante, os morros, o infinito, a longa estrada de terra nos atraiu feito imã, colocando os pneus da tandem em movimento - partimos após mais um delicioso café da manhã mineiro, às sete da matina.

Nossa jornada seria longa, com trechos técnicos delicados, mas agradáveis. Todavia um cansaço imperceptível já nos possuía, afinal havíamos cruzado a metade do percurso, e a prova dessa fadiga foi à ausência de fotos desse dia de pedal.

Por volta do meio-dia chegamos ao Hotel Fazenda Traituba, muito conhecido na região por um portal ter sido construído para o Imperador D. Pedro II, o qual ele nunca inaugurou, mas Dom Luis de Orleans e Bragança fez a corte, séculos depois.

Ouvimos muitas histórias sobre D. Pedro II, verdade ou não, parece que o Imperador tinha muitas amantes e sempre, incógnito, se hospedava em modestos hotéis ou não hotéis, nos quais ele gostava de caçar...

Tomamos conhecimento daquele lugar através do diário do ciclista José Mauricio de Barros e ficamos curiosos em conhecer, porém no dia em que estivemos lá, coincidentemente, a fazenda estava fechada para visitação.

Uma grande festa iria acontecer na high-society regional mineira. Um parente da proprietária da Fazenda Traituba se casaria naquele dia. Montavam cadeiras, mesas para a grande cerimônia, motivo pelo qual havia tantos carros transitando por ali.

Pensei em fazer fotos do portal, mas desisti, o sol estava muito forte e preferimos visitar vacas, bois e bezerros que nos esperavam para um drinque fresco à sombra ao longo da estrada, entre pequenas escolas e simpáticas casas rurais.

A primeira cidade em que alongamos os pés foi Cruzília. Não conseguimos repor nosso estoque de barrinhas, apesar do suculento café da manhã, não ingerimos praticamente nada em mais de 50 km de pedal. Pit-stop. Paramos para comer um misto-quente.

Mathieu aproveitou para descansar o traseiro - a situação tinha piorado nas últimas horas. Conhecemos duplas de tandem que participam de campeonatos e que pedalam em pé, juntos e em sincronia. Mas, atenção, não dá para fazer com alforjes!

Poderíamos ter aliviado o pobre coitado do bumbum do Gillot, colocando-o de stoker, como fazemos quando o terreno é plano e sem perigo (de veículos motorizados), mas naquela região, sem chance. Mathieu conduz a tandem melhor que eu.

Em Cruzília, enquanto observava do outro lado da rua uma tandem da Caloi à venda – relíquia, segundo o Mathieu - sucumbi à glicose do refrigerante mais vendido no mundo, refresquei e tirei o pó da garganta.

Logo tomamos nosso rumo, restava um pouco de energia solar Às quatro da tarde, nossa descida deu início por mais de 10 km de asfalto. A brisa fresca aliviou o cansaço, e aterrisamos numa cidade que ficava entre SP, Minas e Rio.

Mas antes de entrar em “bolhas a ferver”, nome/significado em Tupy da cidade, um motoqueiro perguntou se fazíamos a Estrada Real, confirmamos, simpático, nos sorriu e fez sinal de positivo, orgulhoso, para nós. Iríamos encontrá-lo novamente.

Uma viagem como essa se passa muito tempo calado. Concentra-se na respiração nos momentos difíceis, nos lugares agradáveis, sorri e observa. No meio do mato, fotografa, olhares são trocados, um com o outro e com o horizonte. Clima espacial.

Mas em Caxambu houve contato-Terra e, mesmo por suas famosas montanhas possuírem a maior nascente de água mineral carbogasosa do Planeta, o astral das pessoas que moram lá foi o que nos cativou.

Paramos num bar no calçadão movimentado e descemos da bicicleta. Havíamos percorrido 81,78 km, atingindo velocidade máxima de 68 km/h - a jornada findava, eu me sentia feliz e exausta.

Enquanto tomávamos água engarrafada da região e um expresso, observando a charmosa arquitetura da cidade, avistamos a menos de um quarteirão uma loja de bicicletas.

No último gole da água, milagre, meu cansaço havia sumido (e em menos de 15 minutos). Refeitos, decidimos ir até a loja para encontrar um novo selim para Mathieu e, logo, arranjamos amigos.

Freitas, policial e professor de educação física, musculoso e simpático, vestido uma farda clara de policial, o que destacava sua pele negra, desceu da bicicleta – veículo de ronda – com um bloquinho na mão. Observou a tandem e veio em nossa direção.

Pensamos: Será que seremos multados? O policial se apresentou e começou a conversar, quis saber sobre a nossa viagem, da tandem, detalhes. No final, não nos multou e nos escoltou pela cidade até um hotel de interessante custo/benefício.

Nos convidou para, à noite, encontrar ciclistas que fariam pedal noturno. Caxambu é uma cidade onde se utiliza muito a bicicleta como meio de transporte, além de acontecer importantes campeonatos da montain bike na região.

Era a primeira vez em nossa viagem que interagíamos com o local e seus habitantes. Lisonjeados, aceitamos o convite e depois de jantar no agitado calçadão, pizza e uma tacinha de vinho, fomos ao nosso compromisso, numa simpática esquina.

O motoqueiro das quatro da tarde estava lá, ele era duplamente “biker”. Freitas terminava de dar aula de ginástica para algumas crianças carentes e, aos poucos, os ciclistas chegavam.

O filho de Freitas garoto de nove anos de idade, montado numa bicicleta duas vezes maior que ele, pedalava com ousadia e elegância, empinava e rodopiava, travesso e valente.

Trocamos figurinhas sobre nossa viagem, a galera quis conhecer a tandem, mas a deixamos descansar no hotel e, às dez, partimos – durante os cinco dias de viagem, nunca fomos dormir tão tarde quanto aquele noite.

Nos despedimos e logo partimos. Não preciso dizer que ao chegar ao hotel, antes de tirarmos à roupa, já estávamos dormindo. Não deu nem para namorar – quem sabe, no dia seguinte.

Mal sabíamos que tomaríamos uma surra de vento subindo um trecho longo da Serra da Mantiqueira e que a próxima noite seria a pior noite dormida em toda a viagem, mas, por enquanto, sonhávamos com os anjos.

 
 

Fotos dessa viagem estão em http://www.flickr.com/photos/numatandem