20/06/2005
Compras sem culpa não tem graça
Por: Viviane
Fuentes
Consumir ou ser consumida? Em tempos modernos, somos produto
ou consumidor. Honestamente, não sei qual dos dois eu sou,
são tantas opções que fico confusa. Talvez nem um nem
outro... Existo afinal?
Sem conseguir responder às minhas
próprias perguntas, estaciono meu carro. É a primeira vez
que vou a esse supermercado
- uma amiga
do
bairro disse que os preços
são irresistíveis
- é uma rede pequena que
abriu recentemente e vende apenas produtos básicos.
Resisti
algum tempo
em ir,
pois quando faço
compras, gosto de comprar um ou outro artigo A: frutas
variadas, exóticas e maduras. Então, hoje, como é perto de
casa, decidi conferir. Afinal a única compra que faço, e sem
me sentir culpada, é a de supermercado.
São 11h, segunda-feira, o estacionamento é
limitado.
Por falta de vagas, parei atrás de uma pick-up que também
estacionava. Perguntei ao
motorista, gravando bem sua
fisionomia, se não se importava
do meu carro fechar o dele -
eu seria rápida.
Ele permitiu
enquanto a esposa descia
da caminhonete, comendo três chocolates, ao mesmo tempo em
que o filho de dois anos puxava os braços dela querendo
atenção. Lembrei-me de
que tinha outra lista de coisas a fazer ao chegar em casa: responder
algumas perguntas aos
internautas sobre o Pseu do
Blog. Tirei o pequeno e imaginário bloco de notas da
bolsa.
Entrei no supermercado, passei por uma catraca, peguei uma
cestinha e fui às compras.
Uma
garota se aproximou de mim.
Passei-a no código de barras.
Boné, camiseta surrada, de
chinelas, bochecha simpática. Um pouco antes, eu tomava
notas Sim, as fotos usadas no Pseu do Blog são de minha
autoria ou de Mathieu, sempre. Não sei de onde a garota
surgiu, parecia ser feita de vento.
— Moça, a senhora pode me ajudar a comprar comida?
Mal tinha
começado a gastar
no tal lugar
de preços “irresistíveis” e já estava sendo julgada. Os
produtos nas prateleiras passavam por mim e eu não
conseguia tocá-los, a culpa que não sinto ao fazer compras
tomou força e veio com tudo.
Como poderia encher minha
cestinha de compras com a garota ao meu lado pedindo comida?
Passei pela prateleira de sucos, estendi o braço para pegar
uma garrafa e não consegui. A menina disse:
— Sabe o que é moça, lá em casa nós somos em 11 irmãos e
minha mãe está muito doente.
Quase comecei a chorar.
— 11 irmãos?
— É!
— Que bom, então, são 11 para trazer o pão.
— O quê?
Olhou-me sem entender e prosseguiu:
— O médico disse que ela está morrendo.
Fiquei curiosa.
— O que ela tem?
— Ah, moça, ninguém sabe, e o pior é que a gente nem tem
dinheiro para comprar remédio.
Continuei a andar pelos apertados corredores do
supermercado, sentindo-me esmagada por eles; passei pelo
requeijão e não peguei, passei pelo iogurte e não peguei,
passei pela paçoquinha e não peguei! Afinal o que eu estava
fazendo ali?
Anotei no bloco de notas Não atualizo o Pseu
do Blog diariamente porque tem dias que o dia é um tédio e
porque sempre registro o texto antes de colocar no site.
— Sua mãe foi num pronto socorro? – pergunto.
— Não, não foi, não teve como, a gente é muito pobre.
— Mas pronto socorro...
— É, mas a gente é muito pobre...
— Você disse que ela foi ao médico – confusa, prossegui –
... Onde o médico, que você disse, a atendeu?
— Ah é, é um vizinho nosso.
Passávamos pela limitada sessão de legumes e verdura. De
frutas, só banana. Nada trivial muito menos especial, mas o
preço da batata era realmente irresistível, peguei um quilo,
e pensei: “Vizinho médico?”.
Avistei a prateleira de papel
higiênico, peguei um pacote com quatro rolos sem a menor
culpa e tomei cuidado para não escolher um caro. Fato. A
garota mentia para mim sem a menor culpa. Dessa vez passei o escaner.
O jeito de andar e a destreza dela
iriam tirar de mim o que queria. Anotei Ligar para
Biblioteca Nacional que, raios!, desde abril está em greve.
Voltei à sessão de laticínios e peguei o iogurte de ameixa
que tanto adoro!
— Pega um pão de forma e uma manteiga que eu pago.
— Mas onde eu pego, tia?
— A manteiga está no fundo, o pão está do outro lado.
— Mas qual eu pego?
— Não o mais caro!
Ela olhou para direita, olhou para esquerda, girou a aba do
boné para trás, e saiu arrastando as chinelas com seu
corpinho musculoso e bundinha arrebitada.
Com a expectativa
frustrada em comprar muitos produtos baratos, eu fora
vencida pela miséria do mundo, batata, papel higiênico e
iogurte na minha cesta. Foi necessário somente dez
minutos de compras para sentir-me impotente.
Ajudaria a
combater fome mundial se eu parasse de fumar? (Mas eu já
parei de fumar!) Rabisquei no bloquinho Por causa da
greve, posto os meus textos para mim mesma.
Estava entre
a cruz e a espada, não incentivo violência, não dou dinheiro
em farol... Mas me sentia tão culpada que mal conseguia nem
carregar a minha cesta de penas de ganso.
Já
na fila para pagar. A garota voltou, curvou-se e
depositou o pão e manteiga junto às minhas compras, percebeu
que eu empurrava a cesta com os pés, conforme a fila andava,
e decidiu segurá-la para mim.
— Não precisa carregar, está pesada para mim, deve estar
para você.
— Não, tia, eu consigo - e jogou o olhar na prateleira de
papel higiênico - Agora só falta papel higiênico para
completar minha lista – pensou alto – ...Tia a senhora...
— Não – interrompi – a gente combinou pão e manteiga.
— Mas, olha, só custa R$2,25.
— O meu papel higiênico custa R$1,65!
A fila andou. A garota se cansou de carregar e colocou a
cesta no chão. Olhou para as mãos e perguntou:
— Cadê minha chave?
Eu não tinha visto nenhuma chave com ela. Apavorada, correu,
deu a volta no supermercado e voltou ao ponto de partida.
Olhou dentro da minha cesta e lá estava a chave, para seu
alívio.
Faltando pouco para o caixa me atender, notei que o cara da
pick-up pagava suas compras, enquanto sua esposa comia um
pacote novo de bolachas com o filho chorando e se
esborrachando no chão. “Que diabos faz aquela chave na mão
da garota?”. O chaveiro era de acrílico, tipo 7X9, com a cor
do logo do supermercado e com o logo do supermercado!
— Que chave é essa?
— É da minha mãe?
— Mas tem o nome do supermercado.
— Eu tenho um armário aqui.
— Armário?
— É da minha mãe, para colocar as coisas.
Chegou minha vez. O caixa me atendia. Passei primeiro as
compras da garota, e paguei. O cara da pick-up me
arremessou um gentil olhar já descarregando suas compras no
carro. Pedi ao caixa que passasse, agora, as minhas compras,
disse-lhe que voltaria num instante.
Saí, livrei a saída do
motorista e estacionei meu carro numa vaga apropriada. Tudo
muito rápido. Ao voltar, a garota que esteve comigo durante
as compras, desaparecera. Nem havia me dito obrigado. Olhei
para os lados, para dentro e fora do supermercado, havia
sumido feito fumaça.
— R$8,25, senhora – disse o caixa para mim.
Dei-lhe uma nota de R$10,00, havia armários de ferro na
entrada do supermercado, mais de 20, semelhantes àqueles de
clube, com número e tudo.
— Quem tem acesso àqueles armários ali? – perguntei ao
caixa enquanto eu ensacava minhas compras.
— Os funcionários do supermercado.
— Quem é aquela menina que estava comigo? A mãe dela
trabalha aqui?
— Qual menina?
— A negra, bonitinha, de uns 7 anos...
O caixa não me respondeu, apenas olhou com uma cara de quem
diz Desculpe-me, mas do que é que a senhora está falando?
Apanhei meus dois raquíticos sacos de compras e entrei no
carro, cheia de perguntas que eu não poderia responder. A
garota era filha do dono do supermercado (se sim, explicado
porque as mercadorias eram tão baratas), ou era uma golpista
autônoma? Nenhuma das duas alternativas anteriores?
Engato a ré e vou para casa. Já em casa, descarrego as
compras e vou para o computador pensando em Nietzsche. Culpa
cristã, sendo ou não religioso, ninguém está isenta dela,
não é mesmo?
Mas o que Nietzsche tem a ver com isso? Li
apenas um livro dele! Minha mãe não é lavadeira, mas eu
tenho cara de trouxa! O que eu anotei mesmo para responder
aos internautas?...Cruzes! Parece que um carregamento de
melancia caiu sobre mim. (fim)
|