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30/08/2005                        Um segredo, um touro, várias vacas

11/07/2005              Segunda-feira no parque

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11/5/2005            Champanhe e literatura

 

 

30/08/2005 - Um Segredo, um touro, várias vacas Por: Viviane Fuentes

           Semanas atrás, assisti a um espetáculo onde, logo no início dele, o mote é apresentado ao público por uma voz em off:

         "Escreva num papel um segredo seu que você jamais contaria a alguém" e, baseando-se nos segredos do próprio elenco - sem que o ator/autor fosse identificado – , se fez o desenrolar da peça...

         Assim que a cortina baixou, e por dias, fiquei pensando e remoendo, intrigada: Qual seria um segredo meu que eu não contaria a ninguém. Pombas! Um segredo meu que eu NUNCA contaria a alguém, eu JAMAIS contaria a alguém! Trataria logo de esquecer para mantê-lo velado.

          Não lembrar faz parte de esquecer, não é mesmo? Porque segredo é algo que não se conta, ou seja, que não deveria ser contado, uma vez que é revelado, ele se transforma em um escândalo, em um furo de reportagem ou fofoca.

         Normalmente a humilhação, vergonha, a culpa e o veneno são intrínsecos aos segredos. Existem aqueles que juramos nunca contar a ninguém, e contamos (ô, boca maldita!!), porém há os que só dizem respeito a nós mesmos e que, sei lá porque, jamais contaríamos a alguém... Mas, ele pode ser escrito! Genial! Era essa a proposta do espetáculo e daquele grupo teatral.

          Então, aproveitando o ensejo, tiro o véu da covardia e visto a capa da valentia. Não interpretarei, não encenarei num palco, mas a caneta vai estrebuchar no papel, mesmo envergonhada, vou escrever e imortalizar um segredo meu que, de constrangedor, pode soar engraçado...

            Aos 23 anos, atravessei o oceano rumo à Espanha, era fundamental, naquele momento da minha vida, conhecer a terra dos meus ancestrais, oriundos de Valência. Havia algo cármico no ar ou talvez eu estivesse drogada pela obras de Paulo Coelho que havia lido na adolescência. E foi em Rascafria onde tudo aconteceu.

            Rascafria é uma pequena cidade, próxima a Madrid, que abastece água para toda a província madrilenha . Seu vilarejo se esconde num grande bosque de Walt Disney, rodeado de muito verde, rios e cascatas, propício a muita fantasia, repouso e grandes revelações.

            Hospedada na casa de dois grandes amigos, no primeiro dia com eles, matei a saudade; no segundo dia, conheci o pueblo inteiro e aos seus habitantes; no terceiro dia, como a região era perfeita para caminhar, inspirar/expirar ar puro da melhor qualidade, Angela, minha grande amiga, teve a brilhante idéia de me levar para os confins das montanhas, para que eu pudesse espairecer, me inspirar e tomar sol.

           Ela trabalharia naquele dia e, portanto, não poderia me acompanhar. Levou-me para o meio do mato, de carro, logo de manhazinha, e sugeriu-me que caminhasse paralelo ao rio, assim não me perderia. Dali duas horas, voltaria para me buscar.

            Desci do carro. Angela partiu. Notei que nos cumes das montanhas ainda havia uma pitada de neve - era abril. Observar a natureza crua, selvagem, sempre ajudou a desintoxicar a vida sádica do cosmopolita.

           O ar de Rascafria era tão puro, mas tão puro, que poderia irritar as narinas, ou mesmo matar alguém habituado à poluição das grandes metrópoles, como São Paulo, a qual eu vivia.

            O dia estava lindo e ensolarado. Eu, de five- pockets (501’) e camiseta branca, bem ao estilo da época (talvez calçasse um Keds de couro branco e chulezento). Carregava caneta e um caderno de anotações.

           Aqui, no meio do nada, não apenas posso escrever poesia inspirada, como também expirada, posso dar início a um romance... Vou deixar o vento rolar - inspirei e pensei.

            Subia a montanha, um rio charmoso e estreito me acompanhava. Era tímido, deveria ter uns cinco metros de largura. De comprimento, bom, de comprimento era infinito. Eu respirava e deixava o sangue espanhol desbravar meu coração. Uma história que eu não conhecia me seria contada.

            Depois de caminhar uns três quilômetros, decidi descer um pequeno barranco para ficar rente ao rio. Escolhi cuidadosamente uma pedra iluminada. Tirei os óculos de sol. Olhei ao redor. Quanto verde!

           Ninguém, apenas eu, no meio do mato, orientada pelo som dos pássaros e da água corrente. Estava realmente relaxada nas minhas primeiras férias fora do Brasil (na época, eu trabalhava no comércio, incluindo finais de semana, além de fazer muitas baladas, portanto, meu corpo e mente estavam exaustos).

            Parecia que apenas eu habitava a Espanha. Castanholas soavam como trombetas. Tirei a camiseta. Tirei a five pocket, estirei-a na pedra e sentei-me em cima dela. Apenas uma calcinha cobria meu corpo.

            Peguei o lápis e fiz anotações no caderno de possíveis poemas. O sol estava tão forte que eu nem sentia o vento gelado montanhês. Fui até à beira do rio e imergi a mão. Coño!  Tive a sensação de que uma gaveta se fechara nela.

            Desisti de banhar-me. Voltei à pedra, esbocei outro possível poema. Dia perfeito, ocasião perfeita, o clima conspirava a favor do embrião de um romance. De repente, ouço um barulho - na época eu já tinha o tímpano perfurado – mas não consegui distinguir exatamente o que era e de onde vinha.

         Coloquei a camiseta sobre os seios, joguei o olhar longe e a 180 graus, não vi nada, mas novamente um ruído irrompeu. Pensei tratar-se de duas ou três pessoas que, talvez, viessem na minha direção.

          Como eu estava bem abaixo da trilha, talvez não me vissem. Esperei mais alguns segundos, e vi a fuça de um touro. Não tive dúvida, não tive paciência, gritei: “Etcha, porra!” e desci ribanceira abaixo.

        Nem dei tempo para ver algo além da fuça do touro. Entrei no rio. Era raso, não ultrapassava a altura dos joelhos, mas a água, neve recém derretida, parecia esmagar meus ossos, ainda assim, apavorada, corri percurso abaixo, apenas de calcinha de algodão, apoiando-me nos cipós que fechavam e faziam sombra naquele trecho do rio.

          Desequilibrava-me nas pedras, submersas no rio, e me apoiava nos cipós. Tudo ao mesmo tempo. Desespero! Não tinha árvore para trepar. Entrei em pânico, não tinha como de fato me esconder, como me defender na tourada, e não era apenas um touro, eram vários - soube pelo barulho estrondoso do contato das patas com a relva.

          A água já tinha triturado minhas juntas, eu não sentia meus pés, eles estavam adormecidos. De cócoras tentei manter o equilíbrio entre uma pedra e outra, já que não tinha condições de seguir adiante. Ao mesmo tempo em que chorei, fiz xixi na calçinha.

          Eu iria morrer. Minha bisavó, apesar de não ser espanhola, era toureira, e morrera com um chifre na barriga. Restavam-me alguns minutos para saber onde eu tomaria o meu. Minha morte anunciada num tablóide: “Semi-nua, mijada e no meio do rio".

        O laudo da autopsia: “Morta de medo, morta de frio e morta de vergonha - observação: vestígios de urina entre as pernas”.

         Era horrível pensar que todos saberiam da situação em que estive segundos antes da minha extinção. Estava próximo o meu fim, os touros viriam em minha direção. Ouvi patas de encontro na água. Depois, mais patas dentro do rio.

         Tudo ficou branco. Apaguei por segundos, quando recobrei o juízo, esforçando-me em me despetrificar do frio, em me despetrificar do medo, tive a melhor notícia: Eu ainda estava viva!

           O cenário era o mesmo: um bosque e não um clarão sem forma. Os touros haviam atravessado a margem do rio exatamente na altura da pedra em que eu estava antes - do outro lado, as ervas se restavam mais frescas e virgens e verdes.

            Com as pernas bambas, e muita dificuldade em andar, me desfiz das vitórias do pânico e consegui chegar à pedra onde eu estava. A cena: meu lápis inteiramente mastigado por um ruminante e minha calça jeans carimbada por um enorme estrume.

           Agradeci a chance que me foi dada para sobreviver, sobrevivendo. Se não tivesse saído dali, nem escritora nem gerente teriam vivido.

           Vesti a roupa, peguei meus pertences e sai correndo pela trilha, chorando e tremendo, rezando para não encontrar outros touros, rezando para encontrar uma máquina de teletransporte que me levasse a uma cidade de asfalto, faróis e poluição.

          Cheguei onde minha amiga havia me deixado de carro, ainda faltava uma hora para que fosse me buscar. Preferi não correr o risco. Vi ao longe, lá em baixo, Rascafria. Pra lá fui, correndo e prometendo a mim mesma nunca contar a ninguém a experiência de medo e humilhação que havia passado num bosque - encantado uma ova!

            Quando cheguei, Angela, ainda dava aula de dança. Tratei logo de me trocar, não queria que percebesse minha calça “cagada” e, em seguida, fui para cozinha fazer um longo chá de camomila. Ao terminar a aula, Angela veio ter comigo na cozinha, e disse:

            — Voltou antes? Por que não me esperou?

            — Ah, sei lá.

            — É lindo lá, não?! Como foi, aproveitou?

            — Sim, foi legal.

            — Você está meio pálida ou é impressão minha?

            — Sei lá, deve ser impressão.

            — Aconteceu alguma coisa?

            — Lá? Não, não.

            — O que foi? Você está com lágrimas...

            Aos prantos, arremessei-me no colo de Angela e lhe contei como havia sido meu “reencontro ancestral”. Assim que me percebeu mais calma, sob o efeito da camomila, comentou:

            — Gozado, Veep, não tem touros nessa região, só vacas.

            — Angela, eu estou na Espanha, não venha dizer que aquilo não era touro, eu vi com meus próprios olhos.

            — Mas é estranho. Você viu com clareza? Não é porque estamos na Espanha que touros pastam soltos por aí – colocou-se delicadamente.

            — Tinha um estrume enorme!

            — Podia ser de vaca ou de boi.

            — Dá tudo igual, vaca, boi, touro.

            Angela não disse nem mais uma palavra.

            — Não conte a ninguém sobre isso, ok?

            — Não se preocupe.  

             Havia apagado da memória esse terrível segredo, mas hoje o transformei, não numa fofoca, não num furo de reportagem ou humilhação. Transformei pó em ouro e vaca em touro. (fim)