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Um
segredo, um touro, várias vacas
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Tipos, publicidade e viva Gerard Depardieu!
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Champanhe e literatura |
30/08/2005 - Um Segredo, um touro, várias vacas
Por: Viviane
Fuentes Semanas
atrás, assisti a um espetáculo onde, logo no início dele, o
mote é apresentado ao público por uma voz em off:
"Escreva num papel um segredo seu que você jamais contaria a
alguém" e, baseando-se nos segredos do próprio elenco -
sem que o ator/autor fosse identificado – , se fez o
desenrolar da peça...
Assim que a cortina baixou, e
por dias, fiquei pensando e remoendo, intrigada: Qual seria
um segredo meu que eu não contaria a ninguém. Pombas! Um
segredo meu que eu NUNCA contaria a alguém, eu JAMAIS
contaria a alguém! Trataria logo de esquecer para mantê-lo
velado.
Não lembrar faz parte de esquecer, não é mesmo?
Porque segredo é algo que não se conta, ou seja, que não
deveria ser contado, uma vez que é revelado, ele se
transforma em um escândalo, em um furo de reportagem ou
fofoca.
Normalmente a humilhação, vergonha, a culpa e o
veneno são intrínsecos aos segredos. Existem aqueles que
juramos nunca contar a ninguém, e contamos (ô, boca
maldita!!), porém há os que só dizem respeito a nós mesmos e
que, sei lá porque, jamais contaríamos a alguém... Mas, ele
pode ser escrito! Genial! Era essa a proposta do espetáculo
e daquele grupo teatral.
Então, aproveitando o ensejo, tiro o véu da
covardia e visto a capa da valentia. Não interpretarei, não
encenarei num palco, mas a caneta vai estrebuchar no papel,
mesmo envergonhada, vou escrever e imortalizar um segredo
meu que, de constrangedor, pode soar engraçado...
Aos 23 anos, atravessei o oceano rumo à Espanha,
era fundamental, naquele momento da minha vida, conhecer a
terra dos meus ancestrais, oriundos de Valência. Havia algo
cármico no ar ou talvez eu estivesse drogada pela obras de
Paulo Coelho que havia lido na adolescência. E foi em
Rascafria onde tudo aconteceu.
Rascafria é uma pequena cidade, próxima a
Madrid, que abastece água para toda a província madrilenha .
Seu vilarejo se esconde num grande bosque de Walt Disney,
rodeado de muito verde, rios e cascatas, propício a
muita fantasia, repouso e grandes revelações.
Hospedada na casa de dois grandes amigos, no
primeiro dia com eles, matei a saudade; no segundo dia,
conheci o pueblo inteiro e aos seus habitantes; no
terceiro dia, como a região era perfeita para caminhar,
inspirar/expirar ar puro da melhor qualidade, Angela, minha
grande amiga, teve a brilhante idéia de me levar para os
confins das montanhas, para que eu pudesse espairecer, me
inspirar e tomar sol.
Ela trabalharia naquele dia e,
portanto, não poderia me acompanhar. Levou-me para o meio do
mato, de carro, logo de manhazinha, e sugeriu-me que
caminhasse paralelo ao rio, assim não me perderia. Dali duas
horas, voltaria para me buscar.
Desci do carro. Angela partiu. Notei que nos
cumes das montanhas ainda havia uma pitada de neve - era
abril. Observar a natureza crua, selvagem, sempre ajudou a
desintoxicar a vida sádica do cosmopolita.
O ar de Rascafria
era tão puro, mas tão puro, que poderia irritar as narinas,
ou mesmo matar alguém habituado à poluição das grandes
metrópoles, como São Paulo, a qual eu vivia.
O dia estava lindo e ensolarado. Eu, de five-
pockets (501’) e camiseta branca, bem ao estilo da época
(talvez calçasse um Keds de couro branco e chulezento).
Carregava caneta e um caderno de anotações.
Aqui, no meio
do nada, não apenas posso escrever poesia inspirada, como
também expirada, posso dar início a um romance... Vou deixar
o vento rolar - inspirei e pensei.
Subia a montanha, um rio charmoso e estreito me
acompanhava. Era tímido, deveria ter uns cinco metros de
largura. De comprimento, bom, de comprimento era infinito.
Eu respirava e deixava o sangue espanhol desbravar meu
coração. Uma história que eu não conhecia me seria contada.
Depois de caminhar uns três quilômetros, decidi
descer um pequeno barranco para ficar rente ao rio. Escolhi
cuidadosamente uma pedra iluminada. Tirei os óculos de sol.
Olhei ao redor. Quanto verde!
Ninguém, apenas eu, no meio do
mato, orientada pelo som dos pássaros e da água corrente.
Estava realmente relaxada nas minhas primeiras férias fora
do Brasil (na época, eu trabalhava no comércio, incluindo
finais de semana, além de fazer muitas baladas, portanto,
meu corpo e mente estavam exaustos).
Parecia que apenas eu
habitava a Espanha. Castanholas soavam como trombetas. Tirei
a camiseta. Tirei a five pocket, estirei-a na pedra
e sentei-me em cima dela. Apenas uma calcinha cobria meu
corpo.
Peguei o lápis e fiz anotações no caderno de
possíveis poemas. O sol estava tão forte que eu nem sentia o
vento gelado montanhês. Fui até à beira do rio e imergi a
mão. Coño! Tive a sensação de que uma gaveta se fechara nela.
Desisti de banhar-me. Voltei à pedra,
esbocei outro possível poema. Dia perfeito, ocasião
perfeita, o clima conspirava a favor do embrião de um
romance. De repente, ouço um barulho - na época eu já tinha
o tímpano perfurado – mas não consegui distinguir exatamente
o que era e de onde vinha.
Coloquei a camiseta sobre os
seios, joguei o olhar longe e a 180 graus, não vi nada, mas
novamente um ruído irrompeu. Pensei tratar-se de duas ou
três pessoas que, talvez, viessem na minha direção.
Como eu
estava bem abaixo da trilha, talvez não me vissem. Esperei
mais alguns segundos, e vi a fuça de um touro. Não tive
dúvida, não tive paciência, gritei: “Etcha, porra!” e desci
ribanceira abaixo.
Nem dei tempo para ver algo além da fuça
do touro. Entrei no rio. Era raso, não ultrapassava a altura
dos joelhos, mas a água, neve recém derretida, parecia
esmagar meus ossos, ainda assim, apavorada, corri percurso
abaixo, apenas de calcinha de algodão, apoiando-me nos cipós
que fechavam e faziam sombra naquele trecho do rio.
Desequilibrava-me nas pedras, submersas no rio, e me apoiava
nos cipós. Tudo ao mesmo tempo. Desespero! Não tinha árvore
para trepar. Entrei em pânico, não tinha como de fato me
esconder, como me defender na tourada, e não era apenas um
touro, eram vários - soube pelo barulho estrondoso do
contato das patas com a relva.
A água já tinha triturado
minhas juntas, eu não sentia meus pés, eles estavam
adormecidos. De cócoras tentei manter o equilíbrio entre uma
pedra e outra, já que não tinha condições de seguir adiante.
Ao mesmo tempo em que chorei, fiz xixi na calçinha.
Eu iria
morrer. Minha bisavó, apesar de não ser espanhola, era
toureira, e morrera com um chifre na barriga. Restavam-me
alguns minutos para saber onde eu tomaria o meu. Minha morte
anunciada num tablóide: “Semi-nua, mijada e no meio do rio".
O laudo da autopsia: “Morta de medo, morta de frio e morta
de vergonha - observação: vestígios de urina entre as
pernas”.
Era horrível pensar que todos saberiam da situação
em que estive segundos antes da minha extinção. Estava
próximo o meu fim, os touros viriam em minha direção. Ouvi
patas de encontro na água. Depois, mais patas dentro do rio.
Tudo ficou branco. Apaguei por segundos, quando recobrei o
juízo, esforçando-me em me despetrificar do frio, em
me despetrificar do medo, tive a melhor notícia: Eu
ainda estava viva!
O cenário era o mesmo: um bosque e não um
clarão sem forma. Os touros haviam atravessado a margem do
rio exatamente na altura da pedra em que eu estava antes -
do outro lado, as ervas se restavam mais frescas e virgens e
verdes.
Com as pernas bambas, e muita dificuldade em
andar, me desfiz das vitórias do pânico e consegui chegar à
pedra onde eu estava. A cena: meu lápis inteiramente
mastigado por um ruminante e minha calça jeans carimbada por
um enorme estrume.
Agradeci a chance que me foi dada para
sobreviver, sobrevivendo. Se não tivesse saído dali, nem
escritora nem gerente teriam vivido.
Vesti a roupa, peguei
meus pertences e sai correndo pela trilha, chorando e
tremendo, rezando para não encontrar outros touros, rezando
para encontrar uma máquina de teletransporte que me levasse
a uma cidade de asfalto, faróis e poluição.
Cheguei onde
minha amiga havia me deixado de carro, ainda faltava uma
hora para que fosse me buscar. Preferi não correr o risco.
Vi ao longe, lá em baixo, Rascafria. Pra lá fui, correndo e
prometendo a mim mesma nunca contar a ninguém a experiência
de medo e humilhação que havia passado num bosque -
encantado uma ova!
Quando cheguei, Angela, ainda dava aula de
dança. Tratei logo de me trocar, não queria que percebesse
minha calça “cagada” e, em seguida, fui para cozinha fazer
um longo chá de camomila. Ao terminar a aula, Angela veio
ter comigo na cozinha, e disse:
— Voltou antes? Por que não me esperou?
— Ah, sei lá.
— É lindo lá, não?! Como foi, aproveitou?
— Sim, foi legal.
— Você está meio pálida ou é impressão minha?
— Sei lá, deve ser impressão.
— Aconteceu alguma coisa?
— Lá? Não, não.
— O que foi? Você está com lágrimas...
Aos prantos, arremessei-me no colo de Angela e
lhe contei como havia sido meu “reencontro ancestral”. Assim
que me percebeu mais calma, sob o efeito da camomila,
comentou:
— Gozado, Veep, não tem touros nessa região, só
vacas.
— Angela, eu estou na Espanha, não venha dizer
que aquilo não era touro, eu vi com meus próprios olhos.
— Mas é estranho. Você viu com clareza? Não é
porque estamos na Espanha que touros pastam soltos por aí –
colocou-se delicadamente.
— Tinha um estrume enorme!
— Podia ser de vaca ou de boi.
— Dá tudo igual, vaca, boi, touro.
Angela não disse nem mais uma palavra.
— Não conte a ninguém sobre isso, ok?
— Não se preocupe.
Havia apagado da memória esse terrível segredo,
mas hoje o transformei, não numa fofoca, não num furo de
reportagem ou humilhação. Transformei pó em ouro e vaca em
touro. (fim)
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